terça-feira, 21 de março de 2023

O conde Fernán Gonzales, o califa e o ermitão

Conde Fernán Gonzales
Conde Fernán Gonzales
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs








Estava o conde Fernán Gonzales caçando com os seus cavaleiros na vila de Lara. De repente, um feroz javali saiu disparado de um matagal. O conde, desejoso de caçar tão boa presa, sem esperar por seus companheiros, saiu a cavalo em perseguição ao animal, que corria velozmente.

Por fim chegou a uma ermida desconhecida, onde o javali se meteu pela porta. Então o conde, pegando a espada, se dirigiu à ermida, onde a fera tinha entrado.

O javali havia se refugiado atrás do altar. O conde se ajoelhou diante do altar e começou a rezar. Neste momento saiu da sacristia um monge de venerável aspecto e avançada idade, apoiado num rude e retorcido cajado. Aproximou-se do conde e saudou-o, dizendo:

— Vinde em paz, conde! A caçada te trouxe até aqui, mas prepara já as montarias, pois te aguarda o Rei Almanzor, o terrível inimigo dos cristãos.

"Dura batalha te aguarda, pois o mouro traz muitos guerreiros. Mas alcançarás grande vitória. E ainda te digo que antes de começar a batalha terás um sinal, que te fará arrepiar a barba e aterrorizará a todos os teus cavaleiros. Agora vai, vai lutar, que hás de alcançar a vitória.

O conde agradeceu ao monge por suas palavras e saiu da ermida. Montou a cavalo e galopou através da mata, até encontrar seus cavaleiros, já impacientes pela tardança de seu senhor.

O conde ordenou seu batalhão e se dirigiu ao encontro de Almanzor, que vinha correndo para o ataque.

Quando viram o exército mouro, prepararam-se para o combate. O conde viu, entretanto, que tinha poucos soldados. Nisto um cavaleiro cristão se adiantou, passando velozmente diante do exército dos infiéis.

Apenas galopou um pouco, e a terra se abriu, tragando o cavaleiro. Depois se fechou, e tudo ficou como antes. Grande terror se difundiu pelo exército cristão, mas Fernán Gonzales, que sabia que esse era o temeroso sinal anunciado pelo monge da ermida, disse em alta voz a seus cavaleiros:

— Não temais! Se a terra não é capaz de suportar-nos, quem poderá conosco? Vamos para o ataque!

Túmulo de Don Fernán Gonzalez, Covarrubias, cruzadas, 1º conde de CastelaE se lançaram contra os mouros, que já galopavam também, prontos para o encontro. O choque dos exércitos foi terrível. Os cristãos, apesar de serem poucos, conseguiram resistir ao primeiro ataque dos mouros, e logo estes começaram a retroceder.

O conde, que havia sido quem dera as primeiras baixas no adversário, animava seus guerreiros, e era o mais valente de todos.

Ao cabo de algumas horas os mouros fugiram, deixando todos os despojos em poder das hostes do conde. Grande vitória para os cristãos, que retornaram cheios de alegria.

O conde separou uma parte dos despojos e foi à ermida, para entregá-la ao monge que lhe profetizara a vitória. E o encarregou de erguer uma igreja, que foi logo o famoso Mosteiro de São Pedro de Arlanza.

O califa Abderramán recebia dos cristãos um tributo a cada ano. Mas em determinada ocasião os reis D. Ramiro de Castela e D. Garcia de Navarra, e Fernán Gonzales, que era o conde tributário de Castela, se negaram a pagar o vergonhoso tributo.
E não só se negaram a pagar, mas mataram os insolentes mensageiros que o califa mouro enviara para reclamar o tributo.

Quando isto chegou aos ouvidos de Abderramán, este se enfureceu, e com seu exército entrou no território dos castelhanos, destruindo os campos e fazendo cruel vingança contra os habitantes daquelas terras.

O Rei D. Ramiro, recebendo o aviso da proximidade do exército mouro, preparou seus guerreiros, que esforçadamente saíram ao encontro do inimigo.

Disseram-lhe que os muçulmanos vinham em grande número, mas ele não deu muito crédito. Mas quando viu chegar a enorme hoste sarracena, voltou até Simancas, e dali enviou cartas a Fernán Gonzales e ao Rei Garcia.

Túmulo de Don Fernán Gonzalez, Covarrubias, cruzadas, 1º conde de Castela
Túmulo do conde Fernán Gonzales
Acudiram os dois ao mesmo tempo. Mas todo o exército cristão não chegava a alcançar nem a metade dos muçulmanos. Então o Rei Ramiro disse:

— Não tenho nenhum conselho que possa servir-nos. Grande é a hoste dos infiéis mouros e minguada a nossa. Mas temos a proteção de São Tiago, que está enterrado em terras galegas. Por ele obra Nosso Senhor grandes milagres, e a ele quero me encomendar, e prometo dar-lhe meu reino se nos ajudar nesse apuro.

Fernán Gonzales e D. Garcia responderam:
— Em nossa terra há o corpo de Sto. Millán, que também opera grandes milagres. A ele nos entregamos, e juramos dar-lhe tributo.

No outro dia de manhã saíram da fortaleza e se dispuseram para o combate. Antes de começar, todos os cristãos se ajoelharam para rezar.

Os mouros, vendo seus inimigos nesta posição, pensaram que estes, aterrorizados, queriam se entregar. Lançaram-se contra eles, mas os fiéis de Cristo montaram em seus corcéis rapidamente e detiveram o ímpeto de seus inimigos. Grande fúria foi a dos castelhanos, leoneses e navarros.

E ainda aumentaram seu valor quando, em meio ao combate, viram aparecer dois desconhecidos cavaleiros que, montados em formosos corcéis brancos, se puseram à frente dos exércitos cristãos.

E destroçaram os mouros de tal modo, que eles acreditavam que, em vez de dois, havia dois mil cavaleiros sobre os corcéis. Atrás dos dois avançavam os cristãos, e desde Simancas até Aza perseguiram os mouros, que fugiram vencidos.

Grande foi a alegria dos católicos. Quando procuraram os dois cavaleiros, que tanto contribuíram para a vitória, não puderam encontrá-los, e compreenderam que eram os dois santos a quem haviam prometido pagar tributo, se os ajudassem.

E desde então esse tributo foi pago.


(V. Garcia de Diego, "Antología de Leyendas de la Literatura Universal" - Labor, Madrid, 1953, p. 27)



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terça-feira, 7 de março de 2023

São Bento de Núrsia, Patriarca dos Monges do Ocidente – 2

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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sócio do IPCO,
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Continuação do post anterior: São Bento de Núrsia, Patriarca dos Monges do Ocidente – 1



Superior de doze mosteiros

Entretanto, os discípulos continuaram a afluir, mas desta vez em tão grande número, que foi preciso dividi-los em grupos de doze monges, em doze mosteiros diferentes, cada um deles regido por um abade sob a supervisão de Bento.

Sob a direção do grande abade, a existência dos primeiros monges beneditinos transcorria pacífica e prosperamente, dedicada por inteiro à oração e ao trabalho.

Os milagres, a doutrina, a santidade de Bento lhe atraíam numerosas vocações.

Mesmo de Roma afluíam nobres varões, desejosos de se tornarem seus discípulos, enquanto patrícios lhe entregavam seus filhos para que os educasse.

Foi o caso dos meninos Mauro e Plácido, posteriormente também elevados à honra dos altares, que ficaram famosos na história de São Bento.

O Mosteiro de Monte Cassino

Novos dissabores fizeram com que Bento resolvesse partir, desta feita para um local entre Roma e Nápoles denominado Cassinum, antiga vila fortificada dos romanos.

Ali se instalou com os que o seguiram na fortaleza abandonada, que ele reformou, dando origem à célebre Abadia de Monte Cassino.

Sob a direção do santo, o novo mosteiro floresceu.

“Pai bondoso e ao mesmo tempo mestre rigoroso, o homem de Deus os corrige [os monges] e repreende sempre que necessário; nem uma só falta de seus discípulos, seja coletiva, seja pessoal, lhe passa inadvertida.

“Todos no mosteiro sabem por experiência que têm um abade extraordinário, a quem nada se pode ocultar de quanto pensam no mais recôndito da alma (Diálogos), de quanto fazem fora de casa. [...]

“Já em Subíaco, vários de seus milagres ressaltaram com força o valor da oração, da confiança na Providência, do trabalho, da obediência” (Dom Colombas, op.cit., p. 62.).

Os últimos anos de São Bento transcorreram no Monte Cassino.

“A morte, ou melhor, o trânsito de São Bento – como é descrito por São Gregório Magno – tem a majestade, a elegância e a placidez de uma cerimônia litúrgica” (Dom Colombas, op.cit., p. 65.).

Ela ocorreu provavelmente no dia 21 de março de 547.

A Regra de São Bento

Para Bossuet, o erudito bispo e teólogo do século XVII, a Regra de São Bento é “uma suma de cristianismo, um douto compêndio de toda a doutrina do Evangelho, de todas as instituições dos Santos Padres, de todos os conselhos de perfeição.

“Nela sobressaem eminentemente a prudência e a simplicidade, a humildade e o valor, a severidade e a mansidão, a liberdade e a dependência; nela a correção desdobra todo o seu vigor, a condescendência todo o seu atrativo, a autoridade a sua robustez, a sujeição a sua tranquilidade, o silêncio a sua gravidade, a palavra as sua graça, a força o seu exercício, e a debilidade o seu sustentáculo” (In Dom Colombas, Introducción General, op.cit., p.143.).

Figura moral de São Bento

Com o subtítulo “A figura Moral”, Dom Garcia M. Colombas, monge de Montserrat, na sua Introdução à Vida e Regra de São Bento, que estamos seguindo, nos oferece em rápidas pinceladas alguns traços da personalidade do Santo, baseado no que este diz em sua Regra. Citaremos alguns deles.

Gravidade

“Uma das características que chama a atenção ao contemplar a figura moral do Santo é a austeridade, a dureza, a virilidade de seu caráter, marcado pelo selo de seu país de origem. [...]

“O patriarca não é amigo de muito falar, detesta o riso imoderado, proíbe com singular energia as piadas (Regra, 6,8); a cada momento nos descobre seu desgosto diante do olvido da própria responsabilidade, pelas decisões prematuras, ligeireza de espírito.

“E essa gravidade que exige dos outros, brilha em cada uma de suas frases; ao dispor qualquer detalhe da observância monástica, desde o mais trivial ao mais importante, suas palavras são sempre circunspectas” (Op.cit., pp. 67-68.).

Objetividade

“Toda a Regra leva a marca de um espírito que não constrói a priori, segundo um ideal abstrato e um plano rígido, mas que vê a realidade tal qual é, e tenta adaptar-se a ela” (Id.ib., p. 69).

“Temperamento de chefe, e de chefe romano, quer que no mosteiro tudo esteja em ordem, que tudo se cumpra nele com perfeição”.

“Outro aspecto da personalidade moral de São Bento, que começa por ser um dos predicados mais importantes de seu temperamento romano e acaba com um marcado caráter de virtude sobrenatural, é a sua discrição.

Morte de São Bento, Lorenzo di Niccolò di Martino (1373 – 1412).
Morte de São Bento, Lorenzo di Niccolò di Martino (1373 – 1412).
“Misericórdia e justiça, força e doçura, natureza e graça, lei e privilégio, caridade e disciplina, tudo na Regra se acha em perfeito equilíbrio (Id. ib., pp. 70-71).”

Em nada vulgar

“Rebento de uma família rica e distinta, São Bento se mostra em todo momento cheio de nobreza, de finura, de urbanidade. Tanto em seu porte quanto em suas relações sociais, em seu pensamento como na forma de expressá-lo, nada achamos nele que seja vulgar” (Id.ib., p.73.).

São Bento “possuiu do pensador a amplitude e a profundidade do olhar que compreende os problemas da vida e, em seus próprios limites, procura resolvê-los.

“A Regra nos revela esta inteligência poderosa, muito mais prática que especulativa, cujos dotes essenciais são a clareza e a lógica. [...] Outra característica notável da inteligência de São Bento é sua penetração psicológica.

“O patriarca conhece o homem, suas possibilidades, suas fraquezas, suas reações” (Id. ib., p. 75).

“Pius pater”

“Graças a essas qualidades de coração, São Bento pôde encarnar plenamente o pius pater que deve ser todo abade beneditino. A Regra inteira está impregnada do espírito de paternidade afetuosa e terna, que sabe compreender e adaptar-se, dissimular e alentar” (Id.ib., p. 79).

“A virtude da religião nele é algo mais que uma característica: é o sentimento dominante que informa toda sua maneira de julgar e de agir, que unge inteiramente a figura, a vida e a Regra do patriarca, constituindo sem dúvida o verdadeiro fundo de sua personalidade” (Id. ib., p. 81).

Enfim, São Gregório Magno declara em seus Diálogos: “Se alguém quer conhecer mais profundamente sua vida e seus costumes [de São Bento], poderá encontrar no mesmo ensinamento da Regra todas as ações de seu magistério, porque o santo varão de modo algum pôde ensinar outra coisa senão o que ele mesmo viveu” (Diálogos, II, 36, in op. cit. p. 255.).


(Autor: Plinio Maria Solimeo, in CATOLICISMO, julho 2016).



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