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Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs
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A figura luminosa de Santo Odon, abade de Cluny se coloca no medievo monástico, que viu a surpreendente difusão na Europa da vida e da espiritualidade inspiradas na Regra de São Bento.
Ocorreu, durante aqueles séculos, um prodigioso surgimento e multiplicação de claustros que, ramificando-se no continente, difundiram nele o espírito e a sensibilidade cristãos.
Santo Odon nos leva, em particular, a um mosteiro, Cluny, que durante a Idade Média foi um dos mais ilustres e celebrados, e ainda hoje revela, através de suas ruínas majestosas, as marcas de um passado glorioso por sua intensa dedicação à ascese, ao estudo e, de forma especial, ao culto divino, envolvido pelo decoro e pela beleza.
Odon foi o segundo abade de Cluny. Nasceu em 880, nos confins entre Maine e Touraine, na França. Foi consagrado pelo seu pai ao santo bispo Martinho de Tours, a cuja sombra benéfica e em cuja memória Odon passou toda a sua vida, concluindo-a perto de seu túmulo.
A escolha da consagração religiosa esteve nele precedida pela experiência de um momento especial de graça, do qual ele mesmo falou a outro monge, João o Italiano, que depois foi seu biógrafo.
Odon era ainda adolescente, por volta dos 16 anos, quando, em uma vigília de Natal, sintiu como lhe saía espontaneamente dos lábios esta oração a Nossa Senhora:
“Minha Senhora, Mãe de misericórdia, que nesta noite destes à luz o Salvador, rezai por mim. Que vosso parto glorioso e singular seja, oh, a mais pia, meu refúgio” (Vita sancti Odonis, I,9: PL 133,747).
EXEMPLOS DE VIDA DOS ABADES SANTOS DE CLUNY
O apelativo “Mãe de misericórdia”, com o qual o jovem Odon invocou então Nossa Senhora, será aquele com o qual ele sempre quis se dirigir a Maria, chamando-a também de “única esperança do mundo (...), graças à qual nos foram abertas as portas do paraíso” (In veneratione S. Mariae Magdalenae: PL 133,721).
Naquele tempo, ele começou a aprofundar na Regra de São Bento e a observar alguns dos seus mandatos, “carregando, ainda sem ser monge, o leve jugo dos monges” (ibidem, I,14: PL 133,50).
Em um dos seus sermões, Odon se referiu a São Bento como “farol que brilha na tenebrosa etapa desta vida” (De sancto Benedicto abbate: PL 133,725) e o qualificou como “mestre de disciplina espiritual” (ibidem: PL 133,727).
Com afeto, revelou que a piedade cristã, “o recorda com a mais viva doçura”, consciente de que Deus o elevou “entre os sumos e eleitos Padres da santa Igreja” (ibidem: PL 133,722).
Fascinado pelo ideal beneditino, Odon deixou Tours e entrou como monge na abadia beneditina de Baume, para passar depois à de Cluny, da qual se converteu em abade em 927.
A partir deste centro de vida espiritual, ele pôde exercer uma ampla influência nos mosteiros do continente. De sua guia e reforma beneficiaram-se também, na Itália, diversos cenóbios, entre eles o de São Paulo Fora dos Muros.
Odon visitou Roma mais de uma vez, chegando também a Subiaco, Monte Cassino e Salerno. Foi precisamente em Roma que, no verão de 942, ele ficou doente. Sentindo-se perto da morte, com todos os esforços, quis voltar junto a São Martinho, onde morreu durante a oitava do santo, no dia 18 de novembro de 942.
Seu biógrafo, ao sublinhar em Odon a “virtude da paciência”, oferece um longo elenco de suas demais virtudes, como o desprezo do mundo, o zelo pelas almas, o compromisso pela paz das Igrejas etc.
Grandes aspirações do abade Odon eram a concórdia entre o rei e os príncipes, a observância dos mandamentos, a atenção aos pobres, a correção dos jovens, o respeito aos idosos (cf. Vita sancti Odonis, I,17: PL 133,49).
Ele amava a pequena cela em que residia, “afastado dos olhos de todos, preocupado somente com agradar Deus” (ibidem, I,14: PL 133,49). Não deixava, no entanto, de exercitar também, como “fonte superabundante”, o ministério da palavra e do exemplo, “chorando este mundo como imensamente mísero” (ibidem, I,17: PL 133,51).
Em um só monge, comenta seu biógrafo, encontravam-se unidas as diversas virtudes existentes de forma dispersa nos demais mosteiros: “Jesus, em sua bondade, baseando-se nos diversos jardins dos monges, formava em um pequeno lugar um paraíso, para regar a partir da sua fonte os corações dos fiéis” (ibidem, I,14: PL 133,49).
Em uma passagem de um sermão em honra de Maria Madalena, o abade de Cluny nos revela como concebia a vida monástica: “Maria, que, sentada aos pés do Senhor, com espírito atento, escutava sua palavra, é o símbolo da doçura da vida contemplativa, cujo sabor, quanto mais é degustado, mais induz a alma a desapegar-se das coisas visíveis e dos tumultos das preocupações do mundo” (In ven. S. Mariae Magd., PL 133,717).
Esta é uma concepção que Odon confirma em outros escritos seus, dos quais se transluz seu amor pela interioridade, uma visão do mundo como realidade frágil e precária da qual é preciso desarraigar-se, uma constante inclinação ao desapego das coisas consideradas como fonte de inquietude, uma aguda sensibilidade pela presença do mal nas diversas categorias de homens, uma íntima aspiração escatológica.
Esta visão de mundo pode parecer bastante afastada da nossa e, no entanto, a de Odon é uma concepção que, vendo a fragilidade do mundo, valoriza a vida interior aberta ao outro, ao amor ao próximo e, precisamente assim, transforma a existência e abre o mundo à luz de Deus.
Merece uma particular menção a “devoção” ao Corpo e Sangue de Cristo que Odon, frente a um estendido abandono, vivamente deplorado por ele, cultivou sempre com convicção.
Ele estava firmemente convencido da presença real, sob as espécies eucarísticas, do Corpo e do Sangue do Senhor, em virtude da conversão “substancial” do pão e do vinho.
Ele escrevia: “Deus, Criador de tudo, tomou o pão, dizendo que era seu Corpo e que o havia oferecido para o mundo, e distribuiu o vinho, chamando-o de seu Sangue”; portanto, “é lei de natureza que se dá a mutação segundo o mandato do Criador” e, por isso, “imediatamente, a natureza transforma sua condição habitual: sem dúvida, o pão se converte em carne e o vinho se converte em sangue”; à ordem do Senhor, “a substância muda” (Odonis Abb. Cluniac. occupatio, ed. A. Swoboda, Lipsia 1900, p.121).
Infelizmente, anota o próprio abade, este “sacrossanto mistério do Corpo do Senhor, em que consiste toda a salvação do mundo” (Collationes, XXVIII: PL 133,572), é celebrado com negligência.
“Os sacerdotes – adverte – que acedem ao altar indignamente, mancham o pão, isto é, o Corpo de Cristo” (ibidem, PL 133,572-573).
“Somente quem está unido espiritualmente a Cristo pode participar dignamente do seu Corpo eucarístico: caso contrário, comer sua carne e beber seu sangue não seria seu benefício, mas sua condenação” (cf. ibidem, XXX, PL 133,575).
Tudo isso nos convida a crer com nova força e profundidade na verdade da presença do Senhor. A presença do Criador entre nós, que se entrega em nossas mãos e nos transforma como transforma o pão e o vinho, transforma, assim, o mundo.
Santo Odon foi um verdadeiro guia espiritual, tanto para monges como para os fiéis da sua época. Frente à “vastidão dos vícios” difundidos na sociedade, o remédio que ele propunha com decisão era o de uma mudança radical de vida, fundada sobre a humildade, a austeridade, o desapego das coisas efêmeras e a adesão às eternas (cf. Collationes, XXX, PL 133, 613).
Apesar do realismo do seu tempo, Odon não se rende ao pessimismo. “Não dizemos isso – precisa – para precipitar no desespero daqueles que gostariam de converter-se. A misericórdia divina está sempre disponível; ela espera a hora da nossa conversão” (ibidem: PL 133, 563).
E exclama: “Ó inefáveis entranhas da piedade divina! Deus persegue as culpas e, no entanto, protege os pecadores” (ibidem: PL 133,592). Apoiado nesta convicção, o abade de Cluny amava deter-se na contemplação da misericórdia de Cristo, o Salvador que ele qualificava sugestivamente como “amante do homem”,
amator hominum Christus (ibidem, LIII: PL 133,637): “Jesus tomou sobre si os flagelos que correspondiam a nós – observa – para salvar, assim, a criatura que é obra sua e à qual ama” (cf. ibidem: PL 133, 638).
Aparece aqui uma característica do santo abade à primeira vista quase escondida sob o rigor de sua austeridade de reformador: a profunda bondade de sua alma.
Ele era austero, mas sobretudo era bondoso, de uma bondade que provém do contato com a bondade divina. Odon – assim dizem seus coetâneos – difundia a alegria de que estava repleto. Seu biógrafo testifica não ter ouvido jamais sair de sua boa de homem “tanta doçura de palavra” (ibidem, I,17: PL 133,31).
Ele costumava convidar para cantar crianças que encontrava pelo caminho e depois lhes dava algum pequeno presente, e acrescenta: “Suas palavras estavam cheias de exultação (...); sua hilaridade infundia em nosso coração uma íntima alegria” (ibidem, II, 5: PL 133,63).
(Fonte: S.S. Bento XVI, audiência geral 14.10.2009, ZP09101415)
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