terça-feira, 29 de outubro de 2024

A recusa do Infante Dom Diniz

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs







[D. Fernando, rei de Portugal, tomou por mulher a Da. Leonor Telles em 1372. Esta era casada com João Lourenço da Cunha. “Um processo de divórcio por parentesco, julgado por juízes afeitos à D. Leonor ou que sabiam até aonde alcançava a sua vingança, a livrou desse tropeço” (p. 65).

Levantou-se contra o matrimônio real, que estava em vias de se realizar, o povo de Lisboa, estimulado por nobres que o viam como adúltero e ilegítimo. Dentre os quais distinguiu-se o infante D. Dinis, irmão do rei, e também Diogo Lopes Pacheco.

De Lisboa fugiu o rei para Santarém, dando ordem a toda a corte que viesse unir-se a ele. De Santarém foi a Eixo, onde realizou-se o infausto enlace, e de lá ao Porto, para apresentar Da. Leonor como rainha.

É nesta ocasião que se deram os fatos descritos por Herculano, que passamos a transcrever. Mantemos a ortografia original.]

Uma numerosa e esplendida cavalgada vinha da banda do bailiado de Leça. El rei D. Fernando ajuntara em Santarém os seus ricos-homens e conselheiros e, amestrado por Leonor Telles na arte de dissimular, recebera com todas as mostras de boa-vontade o infante D. Dinis e Diogo Lopes Pacheco, ao qual, para maior disfarce, não escaceara mercês.

Depois, em folgares e caçadas vagueara pelo reino com D. Leonor, até que em Eixo fizera um como manifesto da resolução que tomara de a receber por mulher, o que neste dia cumprira na antiga igreja daquela célebre comenda dos Hospitalários.

Era, pois, para celebrar esse matrimonio adúltero, agourado pelas maldições populares, que o bispo D. Affonso, menos escrupuloso que o povo de Lisboa acerca de adultérios, vestia de festa o seu mui canônico burgo (a cidade do Porto).

A cavalgada que se vira descer ao longo do vale já atravessava o rio da vila pela ponte do Souto e encaminhava-se para uma antiga porta da povoação primitiva, porta conhecida ainda hoje, como então, pelo nome de Vandoma.

Ao lado direito d'el Rei ia D. Leonor, a rainha de Portugal: ele montado em um cavalo de guerra, ela em um palafrem branco, levado de rédea desde a entrada da ponte pelo infante D. João, que familiarmente falava e ria com a formosa cavaleira.

Da banda esquerda, o bispo Dom Affonso, curvado e enfraquecido pela velhice, oscilava e fazia cortesias involuntárias a cada passada da mansissima e veneranda mula episcopal.

Junto ao velho prelado, o infante D. Dinis caminhava em silencio, e no aspecto melancólico do mancebo divisava-se quão profunda tristeza lhe consumia o coração, vendo-se como atado ao carro triunfal da mulher que pouco a pouco se convertera em sua irreconciliável inimiga.

Após estas principais personagens, via-se uma grande multidão de cavaleiros, clérigos, cortesãos, conselheiros, juizes da corte, companhia esplendida, por entre a qual brilhava o ouro, a prata, as variadas cores dos trajes de festa, que sobressaiam no chão negro das vestiduras roçagantes dos magistrados e clérigos.

Adiante d'el-rei, as danças dos mouros e judeus volteavam rápidas ao som da viola ou alaúde árabe, das trombetas e das soalhas. Segundo o antigo uso, seguiam-se as danças coros de donzelas burguesas, que celebravam com seus cantos de amor a ventura dos noivos.

Mas esse canto tinha um quê que era triste na toada. Triste era, também, o aspecto dos populares, que, sem um só grito de regozijo, se apinhavam para ver passar aquele préstito real.

Mil olhos se cravavam no infante D. Dinis , cujo rosto melancólico revelava que os seus pensamentos eram acordes com os do povo, que por toda a parte não via neste consórcio senão um crime e uma fonte de desventuras.

Os cortesãos, porém, fingiam não perceber o que passava à roda deles e pareciam transbordar de alegria. Muitos eram daqueles que mais contrário haviam sido aos amores d’el-rei, mas, que, vendo, enfim, D. Leonor rainha, voltavam-se para o sol que nascia e calculavam já quantas terras e que soma de direitos reais lhes poderia render da parte de um rei pródigo à sua mudança de opinião.

Entre estes não se via o tenaz e astuto Pacheco. Habituado ao trato da corte por longos anos, experimentado em todos os enredos dos paços, hábil em traduzir sorrisos e gestos, palavras avulsas e discursos fingidos, não tardara em perceber que as mercês e agrados d’el-rei e de D. Leonor encobriam intentos de irrevogável vingança.

Conhecendo que a sedição popular fora inútil e que, ainda renovada com mais fúria, não poderia resistir às armas de D. Fernando, havia-se afastado da corte e, posto que só nos fins desse ano ele passasse a servir o seu antigo protetor e amigo, D. Henrique de Castela, buscara entretanto esquivar-se ao ódio da nova rainha, conservando ao mesmo tempo a boa opinião entre o vulgo.

Abandonado assim do seu guia, o infante D. Dinis sofrera resignado um sucesso que não podia embargar; mas, digno filho de D. Pedro, conservara intacta a sua má vontade a D. Leonor.

Desamparado dos seus parciais, vendo, se não traída ao menos quase morte e inativa aliança de Pacheco, e, para maior desalento, seu irmão mais velho, o infante D. João, ligado com essa mulher, da qual este príncipe mal pensava então lhe viria a última ruína; no meio de tantos desenganos, o infante, a princípio tímido e irresoluto, sentira crescer a ousadia com os perigos; sentira girar-lhe nas veias o sangue paterno.

Obrigado a seguir a corte, nunca D. Leonor achara um sorriso nos seus lábios; nunca o vira contar diante dela um só sinal de desprezo. Assim, a cólera d’el-rei contra seu irmão havia chegado ao maior auge, e os cálculos de fria e paciente vingança estavam resolvidos no ânimo de Leonor Telles.

A cavalgada tinha subido a encosta, atravessado a porta da Vandoma, que em parte ainda subsiste, e passado em frente da Sé, junto da qual se dilatavam os paços episcopais. Aí as danças e folias pararam e fizeram por um momento silêncio.

Então o infante D. João, tomando nos braços a rainha, apeou-a do palafrem, e após ela, el-rei saltou ligeiro do seu fogoso e agigantado ginete.

Dentro em pouco toda a comitiva tinha desaparecido no profundo portal dos paços, e os donzéis conduziam os elegantes cavalos, as mulas inquietas e os mansos palafrens para as vastas e bem providas cavalariças do mui devoto e poderoso prelado da antiga Festabole .

O aposento principal dos paços, quadra vasta e grandiosa, estava de antemão ornado para receber os hóspedes reais do velho bispo D. Affonso. Um trono com dois assentos de espaldar indicava que a ele ia subir, também, uma rainha.

D. Leonor entrou seguida das cuvilheiras e donzelas da sua câmara; el-rei e todos os principais cavaleiros. Viam-se entre estes o alferes-mor Ayres Gomes da Silva, ancião venerável, que fora aio do rei, quando infante, o orgulhoso mordomo-mor D. João Affonso Tele, Gil Vasques de Resende, aio do infante D. Dinis, o prior da Ordem do Hospital, Álvaro Gonçalves Pereira, e muitos outros fidalgos que ou seguiam a corte ou tinham vindo assistir às bodas reais.

Guiada por D. Fernando, Leonor Telles subiu com passo firme os degraus do trono. Como o navegante que, afrontando temporais desfeitos por mares incógnitos e aprocelados e chegando ao porto longínquo, quase que não crê pisar a terra de seus desejos, assim esta mulher ambiciosa e audaz parecia duvidar da realidade de sua elevação.

À alma sorria-lhe mil esperanças; a vida transbordava nela. A seu lado um rei, a seus pés um reino! Era mais que embriaguês; era delírio. Ela sentia um novo afeto, um como desejo de perdão aos seus inimigos!

Tremeu de si mesma e, convocando todas as forças do coração, salvou a sua ferocidade hipócrita, que parecia querer abandoná-la. Era severo o seu aspecto quando esses pensamentos estranhos lhe passaram pelo espírito, mas o sorriso tornou a espraiar-se-lhe no rosto quando o instinto de tigre pôde fazê-la triunfar desse momento em que a generosidade costuma acometer com violência as almas vingativas e ferozes, o momento em que se realiza a suma ventura por largo tempo sonhada.

Do alto do trono e em pé, D. Fernando estendeu a mão: o tropel de cortesãos e cavaleiros, de donas e donzelas formaram, aos lados da espaçosa sala, fileiras esplêndidas, imóveis e silenciosas. El-rei volveu os olhos lentos para um e outro lado e disse:

“Ricos-homens, infanções e cavaleiros de Portugal, um dos mais nobres sacramentos que Deus neste mundo ordenou foi o matrimônio; como para os outros homens, para os reis se instituiu ele; porque por ele as coroas se perpetuam na linhagem real.

“É por isso que eu desposei hoje a mui ilustre D. Leonor, filha de D. Affonso Telles, descendente dos antigos reis e ligados com os mais nobres dentre vós pela dívida de sangue. Assim, a rainha de Portugal será mais um laço que vos una a mim como parentes, que de hoje avante sois meus.

“Leais, como tendes sido a vosso rei pelo preito que lhe fizestes, muito mais o sereis por este novo título. Em que pesa a traidores, D. Leonor é minha mulher! Fidalgos portugueses, beijas a mão à vossa rainha”.

O velho alferes-mor, Ayres Gomes, aproximou-se então do trono, à voz de seu moço pupilo; ajoelhou e beijou a mão a D. Leonor; mas o olhar que lançou para el-rei era como o de pedagogo que de mau humor se acomoda ao capricho infantil de um príncipe. Ao volver d’olhos ao ancião, D. Fernando corou e voltou o rosto.

O infante D. João, porém, dobrando o joelho aos pés da formosa rainha, parecia transbordar de alegria. Contemplando-o, Leonor Telles deixou assomar aos lábios um daqueles ambíguos e quase imperceptíveis sorrisos que, vindos dela, sempre tinham uma significação profunda. Porventura que no infante D. João ela já não via mais que o precursor da humilhação de D. Diniz, do seu capital inimigo.

Após o infante, os fidalgos vieram sucessivamente curvar-se ante D. Leonor. Boa parte deles eram como capitães vencidos seguindo ao capitólio um triunfador romano. Podia, com efeito, dizer-se que, mal grado desses que se arrojavam a seus pés, ela conquistara o trono.

Toda a comprida fileira de nobres oficiais da coroa tinha passado e ajoelhado no estrado real.

Falta um; e era este, que, menosprezando tantas frontes ilustres por valor ou ciência, por fidalguia ou riqueza, inclinadas perante ela, a mulher orgulhosa e implacável esperava cogitando no momento em que o mancebo ainda impúbere, sem renome, sem poderio, célebre só por seu berço e pelo desgraçado drama da morte de D. Ignez, viesse tributar homenagem à que representava um papel análogo ao daquela desventurada, salvo na sinceridade do amor e na inocência da vida.

Mas esse para quem D. Leonor mais de uma vez volvera rapidamente os olhos considerava com os braços cruzados aquele espetáculo em perfeita imobilidade, de que unicamente saíra quando Gil Vasques de Resende, que estava a seu lado, se afastara, caminhando para os degraus do estrado.

O mancebo apertara a mão do idoso aio, trêmuda da idade, com a mão ainda mais trêmula de cólera. Na conta de pai o tinha; venerava-o como filho, e a idéia de o ver prostituir os seus cabelos brancos aos pés de uma adúltera o levara a esse movimento involuntário; involuntário, porque ele naquela postura e naquela hora, não fazia senão coligir todas as forças da alma para salvar a honra do nome de seus avós, do nome dos reis portugueses, esquecida por um de seus irmãos e, talvez, mercadejada por outro em troco de valimento infame.

O velho entendeu o que significava este convulso apertar de mão: duas lágrimas lhe caíram pelas faces; mas obedeceu el-rei.

Só faltava D. Dinis, que continuava a ficar imóvel. Houve um momento de silêncio sepulcral na vasta sala, e este silêncio era para todos indefinido, mas terrível.

D. Fernando pôs-se a olhar fito para seu irmão, enleiado, ao que parecia, em cismar profundo.

Dentro de pouco, poder-se-ia crer que todos os fidalgos que povoavam aquela vasta quadra estava convertidos em pedra semelhante às das colunas góticas que sustinham as voltas ponteagudas do teto, se não fosse o respirar anciado e rápido que lhes fazia ranger sobre os peitos e ombros os seus ricos briaes (túnica leve usada sobre as armaduras ou cotas de malha).

Os lábios d’el-rei tremeram, como a superfície do mar encrespada pela leve e repentina aragem que precede imediatamente o tufão. Depois, entreabrindo-se, com os dentes cerrados, murmurou:


“Infante D. Dinis, beijai a mão à vossa rainha!”

Foi um só o volver de todos os olhos para o moço infante: o sussurro das respirações cessara.

D. Dinis não respondeu; encaminhou-se para o meio do aposento; parou defronte do trono e, olhando em redor de si, perguntou com sorriso de amargo escárnio:

“Onde está aqui a rainha de Portugal?”

“Infante D. Diniz! – disse el-rei, cujo rosto o furor mal reprimido demudara – sofredor e bom irmão tenho sido por largo tempo: não queirais que seja hoje só juiz inflexível de filho querido daquele que também me gerou! Infante D. Dinis, beijai a mão da mui nobre e virtuosa D. Leonor Teles, como fez vosso irmão mais velho, de quem deveríeis haver vergonha”.

“Nunca um neto de D. Affonso do Salado – replicou o infante, com aparente tranqüilidade – beijará a mão da que el-rei seu irmão e senhor quer chamar rainha. Nunca D. Dinis de Portugal beijará a mão da mulher de João Lourenço da Cunha. Primeiro ela descerá desse trono e virá ajoelhar a meus pés, que de reis venho eu, não ela”.

“De joelhos, dom traidor! – gritou D. Fernando, pode-se em pé e descendo dois degraus do estrado – De joelhos, vil parceiro de reveis sandeus! Se a taberna de Felco Taca vos ouviu fazer preito infame aos peões de Lisboa, quebrá-lo-eis diante do vosso rei: quebrá-lo-eis, que vo-lo digo eu!”

D. Dinis viu então que todos os seus passos estavam descobertos: achava-se, por isso, à borda de um abismo. Hesitou um momento; mas lembrou-se de que era neto do herói de Salado e precipitou-se na voragem.

“Vil é a mulher barregan (concubina) e adúltera, e essa é ambas as coisas. Traidor seria um rei de Portugal que assentasse o adultério no trono, e vós o fizestes, rei desonrado e maldito de vosso Deus e de vosso povo! Quem neste lugar é o vil e o traidor?”

O infante, acabando de proferir estas palavras, abaixou a cabeça e deixou descair os braços. Ele bem sabia que se seguia o morrer.

Ouvindo as derradeiras e fulminantes palavras de D. Dinis, el-rei soltara um destes rugidos de desesperação e cólera humanas que nem o rugido da mais brava fera pode igualar; grito de ventríloque, que é como o estridor de todas as fibras do coração que se despedaçam a um tempo; gemido como o do rodado ao primeiro giro do instrumento de suplício; rugido, grito, gemido, conglobados num só hiato, fundidos num som único pela raiva, pelo ódio, pela angústia; brado que só terá eco pleno no bramido que há de soltar o réprobo quando no derradeiro juízo o julgador dos mundos lhe disser: – para ti as penas eternas!

O brado de D. Fernando fizera tremer os mais esforçados cavaleiros que se achavam presentes; o movimento que o seguiu fez gelar o sangue em todas as veias.

Como um relâmpago, ele tinha arrancado da cinta o agudo bulhão (punhal) e, com os olhos desvairados, encaminhava-se para o meio da sala, onde seu irmão o esperava imóvel, com a mão sobre o peito, como se dissesse: “aqui!”

Mas, D. Fernando não pôde oferecer nas aras do adultério um fraticídio; uma barreira se tinha alevantado a seus pés.

Era um velho de fronte calva e de longas melenas brancas e desbastadas pelos anos: era aquele que lhe fora mais que pai e que ele respeitava mais que a memória deste; era o seu alferes-mor, o venerável Ayres Gomes, que, ajoelhado, lhe clamava com vozes truncadas de soluços e lágrimas:

“Senhor! Que é vosso irmão!”

“É um covarde traidor, que deve morrer! Irmão!? Mentes, velho! Ele já o não é!”

À palavra “mentes”, um relâmpago de vermelhidão passou pelas faces cavadas do antigo cavaleiro: abaixou os olhos e correu-os pela espada. Fora esta a primeira vez que ela ficara na bainha depois de tão funda afronta. Mas aquele era o momento dos grandes sacrifícios. Ayres Gomes replicou, limpando as lágrimas:

“Nunca vos menti, senhor, nem quando éreis na puerícia, nem depois que sois meu rei. Sabei-o. Criminoso ou inocente, D. Dinis é filho de meu bom senhor D. Pedro. A vosso pai servi com lealdade; por vós já me andou arriscada a vida. Hoje tendes por defensores todos os cavaleiros de Portugal, ele é que não tem, talvez, um só. Senhor rei, ficai certo de que, para assassinar vosso irmão, vos é mister passar por cima do cadáver de vosso segundo pai!”

Atalhado assim o primeiro ímpeto, o caráter do moço monarca revelou-se inteiro neste momento. Comoveu-se a postura do venerando ancião, que pela primeira fez via a seus pés, e, com a irresolução pintada nos olhos, fitou-os em Leonor Telles.

Por uma reflexão instantânea, a hiena previra que o sangue derramando pelo fraticida não cairia somente sobre a cabeça deste, mas também sobre a dela. Naquele rosto, então semelhante ao de uma estátua, D. Fernando não pôde ler a sentença do infante, bem que lá no fundo do coração ela estivesse escrita com sangue.

Entretanto, os cortesãos, que no furor rompante d’el-rei haviam ficado estupefatos e quedos, vendo-o vacilar, rodearam o infante.

O velho Gil Vasques de Resende, que ia interpor-se, também, entre D. Dinis e el-rei, quando este arrancara o punhal, parara ao ver a heróica resolução do alferes-mor; mas, ao hesitar de D. Fernando, correra a abraçar-se com seu pupilo, que, no meio de tantos ânimos agitados por paixões diversas, era quem unicamente parecia tranqüilo e alheio ao terror que se pintava em todos os semblantes.

Finalmente, el-rei meteu vagarosamente o punhal no cinto e, com voz pausada, mas trêmulas e presa, disse:

“Que esse mal aventurado saia d’ante mim!”

O tom em que estas poucas palavras foram proferidas fez vergar o ânimo de D. Diniz, cujo coração, antes disso, parecera de bronze. Os olhos arrasaram-se-lhe de água.

Sentira que, até então, era uma cólera cega, repentina, insensata, que o ameaçava; agora, porém, no modo e na expressão de D. Fernando vira claramente que era um amor de irmão que expirara.

Com a cabeça pendida em cima do ombro de Gil Vasques de Resende, saiu do aposento.

Era, talvez, o velho e único amigo que lhe restava no mundo.

D. Leonor levou ambas as mãos no rosto, e via-se-lhe arquejar o colo, agitado por mal contido suspiro.

“Coração compadecido e generoso!” – pensou lá consigo o alferes-mor, que havia pouco a tratara de perto pela primeira vez.

“Hora maldita e negra, em que perdi metade da minha tão esperada vingança!” – pensava Leonor Telles e o choro rebentou-lhe com violência.

“Não te aflijas, Leonor – disse D. Fernando, apertando-a ao peito. – Que nunca mais eu o veja, e viva, se puder, em paz!”

Mas as lágrimas correram ainda com mais abundância e amargura.

O resto daquele dia foi triste; triste o banquete e o sarau. A atmosfera em que respirava a nova rainha tinha o que quer que fosse pesado e mortal, que resfriava todos os corações.

À meia noite, por um claro luar de céu limpo de inverno, uma barca subia com dificuldade a corrente rápida do Douro: à pôpa viam-se reluzir, nas toucas e mantos negros de dois cavaleiros que ali iam assentados, as orlas e bordaduras de ouro e prata; um dos remeiros cantava uma cantiga melancólica, a que respondia o companheiro, e dizia assim:

Mortos me são padre e madre:

Eu tamanino fiquei.

Irmãos meus mal me quiseram.

Eu mal não lhes quererei.


Vou-me correr esse mundo;
Sabe Deus se o correrei!
A alma deixo-a cá presa;
O corpo só levarei.

De meus avós nos solares
Nasci: dois dias passei;
Meus irmãos, nada vos tenho
Senão o nome que herdei.

Esta cantiga, cuja toada monótona repercutia nos rochedos aprumados das margens, foi interrompida por doloroso suspiro. Um dos cavaleiros o dera.

Os remeiros calaram-se: arrancaram da voga com mais ânsia e, depois, continuaram:
Se fui rico, ora sou pobre;
Choro hoje, se já folguei;
Vilas troquei por desvios;
Muito fui: nada serei.

Sem padre, madre ou irmãos
A quem me socorrerei?
A ti, meu Senhor Jesus;
Senhor Jesus, me acorrerei!

(Autor: Alexandre Herculano, “Lendas e Narrativas”, Livraria Bertrand, Lisboa, Tomo 1, pp. 161 a 181)


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terça-feira, 15 de outubro de 2024

A Primeira Comunhão e a morte de Vivien

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
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O poema “La Chanson de Guillaume” gira em torno de uma batalha desenvolvida por Guilherme do Nariz Curvo contra os sarracenos de Deramé, na planície de Larchamp.

Vivien atira-se à luta acompanhado de seu primo Girart. A batalha é calorosa e os franceses são dizimados.

Ao cair da tarde, Vivien envia Girart a pedir ajuda a Guilherme.

O conde Vivien perdeu 10 homens, dos 20 que lhe restavam. Os outros perguntaram:

— Que faremos na batalha, amigos?

Disse Vivien:

— Em nome de Deus, senhores, escutai-me. Enviei Girart levando uma mensagem. Hoje mesmo vereis Guilherme ou Luís, o piedoso. Com um ou outro venceremos os árabes.

— Avante, pois, valoroso marquês — responderam eles.

E ei-los que marcham contra o inimigo.

Os pagãos colocaram Vivien em grande perigo. De seus 10 homens, não deixam um só vivo.

É Segunda-feira à noite, e ele fica só na peleja. Tendo permanecido só, com seu escudo, ele os atormenta com cutiladas repetidas. Com sua espada, ele abate uma centena.

— Não chegaremos ao final — diziam os pagãos — enquanto deixarmos seu cavalo vivo debaixo dele.

Eles o perseguem através dos montes e vales, como o caçador acua um animal selvagem. Um grupo o surpreende no meio de um pequeno vale.

Atiram sobre ele flechas e dardos agudos, que se enterram no corpo de seu cavalo. Um bárbaro, montado em rápido cavalo, avança pelo meio do vale.

Três vezes ele brandiu a lança que tem na mão direita, e numa quarta vez a lançou. O projétil se enterra no lado esquerdo da cota de malhas, fazendo saltar 30 escamas.

Vivien recebe no corpo uma grave ferida, e sua insígnia branca lhe escapa das mãos. Jamais ele a reerguerá.

Ele coloca a mão atrás de si, sente a haste e extrai o dardo de seu corpo. Ele atinge o pagão nas costas e lhe enterra o ferro nos rins. De um só golpe ele o faz cair morto.

— Adeus, patife! Bérbere perverso! — brada o jovem Vivien — Não retornarás mais a teu país, e jamais te vangloriarás de ter matado um nobre de Luís.

Depois ele tira sua espada e retorna a combater. Quando ele golpeia as cotas de malha e os elmos, seus golpes os abatem até o chão.

— Santa Maria, Virgem Mãe e Donzela, enviai-me Luís ou Guilherme. Deus, Rei da glória, a quem devo a vida, vós que nascestes da Virgem Maria e cujo corpo foi criado em união com as Três Pessoas; vós que pelos pecadores sofrestes sobre a Cruz; que fizestes o céu e as estrelas, a terra e o mar, o sol e a lua, Eva e Adão para povoar o mundo, tão verdadeiramente como sois o verdadeiro Deus, impedi-me de ser tentado a recuar um só passo.

Antes, que eu perca a vida. Fazei que eu observe meu voto até a morte, e que, graças à vossa bondade, não o atraiçoe.

Santa Maria, Mãe de Deus, tão verdadeiramente que carregais Deus como vosso filho, protegei-me, por vossa santa piedade, para que os vilões sarracenos não me matem.


Logo que pronunciou essas palavras, se arrependeu:

— Tive um pensamento tolo, querendo evitar a morte. Nosso Senhor não agiu assim, Ele que sofreu, por nossa Redenção, a morte dos crucificados.

Não devo, Senhor, pedir um adiamento da morte, posto que Vós mesmo não quisestes isso. Enviai-me Guilherme de Nariz Curvo ou Luís, que governa a França. Graças a ele nós obteremos a vitória.

O calor era forte, como em maio, durante o outono. Os dias eram longos, e ele jejuava havia três dias. Sofria os tormentos da fome e da sede.

O sangue claro escorria de sua boca e da chaga que tinha ao lado esquerdo. Não havia água nas proximidades; a menos de quinze léguas, não conseguiria encontrar nem riacho nem fonte; não havia senão água salgada, das ondas marinhas.

No entanto, no meio da planície corre um vale com água lamacenta, brotada de uma rocha à beira-mar, que os sarracenos turvaram com seus cavalos. Está suja de sangue e de miolos.

O bravo Vivien corre para lá e, inclinando-se, toma a contragosto aquela água salobra.

Os inimigos fazem chover sobre ele os golpes de lança, mas a cota é sólida e lhe protege o busto. Somente suas pernas e seus braços recebem mais de vinte ferimentos.

Ele então se reergue, como um javali feroz, e tira a espada que lhe pende ao lado.

Defende-se com coragem, mas os outros o atormentam como os cães a um javali.

A água salobra que ele bebeu, e que não pode reter, lhe sai pela boca e pelo nariz.

Ele sofre tanto, que sua vista se turva e ele perde a direção. Para acabar com sua bravura, os pagãos o cercam mais de perto.

Os inimigos o cobrem de golpes de lança e flechas de aço, por todas as partes.

Elas se cravam em seu escudo, tão numerosas que o conde não o pode manter à altura de sua cabeça, e o deixa escorregar para os pés.

Lançando setas agudas, dardos e ferros, os inimigos despedaçam a cota do conde. O aço cortante fende o ferro leve de seu peito coberto de malha. Suas entranhas saem para fora.

Como ele sente que seu fim está próximo, roga a Deus misericórdia.

Vivien caminha através da planície, arrastando suas entranhas entre seus pés e segurando-as com a mão esquerda.

Seu elmo afunda até a altura do nariz. Em sua mão direita ele segura uma lâmina de aço, vermelha da copa à ponta e até à bainha ensanguentada.

Já atormentado pela agonia da morte, ele caminha sustentado por sua espada. Pede com fervor a Jesus Todo-Poderoso de lhe enviar Guilherme, o bom francês, ou o Rei Luís, valente guerreiro.

— Verdadeiro Deus de glória, unido em Trindade, Tu que nasceste da Virgem Maria e foste criado em união com as Três Pessoas, Tu que foste crucificado pelos pecadores, defende-me, ó Pai!

Por tua santa bondade, para que eu não seja tentado a recuar um passo sequer na batalha, envia-me, Senhor, Guilherme do Nariz Curvo, porque ele sabe dirigir uma batalha. Deus, nosso Pai, Rei glorioso e forte, que jamais me venha a ideia de recuar um passo por medo da morte.

Um bérbere, vindo pelo pequeno vale e dando galope a seu cavalo rápido, fere na cabeça o nobre barão, com uma lança de aço que leva na mão direita, e seus miolos se espalham pela grama.

Vivien cai de joelhos. É uma grande perda a morte de um tal homem!

Os pagãos, surgindo de todas as partes, fazem em pedaços o seu cadáver. Eles o levam e o colocam sob uma árvore, ao longo do caminho, para que os católicos não o achem mais.

No campo de Aliscans, o exército cristão, comandado por Guilherme d’Orange — Guilherme do Nariz Curvo — tinha sido derrotado pelos sarracenos. Podiam-se contar apenas quatorze sobreviventes.

Próximo a uma fonte, em um prado, jazia um jovem, quase menino, que apesar disto era um guerreiro que nunca havia recuado. Tratava-se de Vivien, sobrinho de Guilherme, a quem ele amava como a um filho.

Percorrendo o campo de batalha, Guilherme reconhece Vivien e o crê morto, mas este faz um leve movimento.

Docemente o nobre duque se inclina e lhe murmura ao ouvido:

— Tu não gostarias de comungar Nosso Senhor Eucarístico? — e lhe mostrou uma Hóstia consagrada. — Porém é preciso que faças tua confissão.

— Eu quero muito — responde uma voz fraca — mas apressai-vos; eu vou morrer. Tenho fome deste Pão. Eis minha confissão: Não me recordo de uma só falta, a não ser que eu tinha feito o voto de jamais recuar um passo diante dos pagãos, e tenho muito medo de haver hoje faltado com a promessa feita ao bom Deus.

Guilherme do Nariz Curvo tira a Hóstia de uma teca que trazia ao peito, e a aproxima dos lábios entreabertos de Vivien, cujos olhos se iluminam.

A morte lhe desceu ao coração, quando acabou de fazer sua primeira comunhão.


(Fonte: “La Chanson de Guillaume” – “Extraits des Chansons de Geste” - Larousse, 1960, pp. 53; Funck-Brentano, “Féodalité et Chevalerie”)



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terça-feira, 1 de outubro de 2024

A rainha Isabel, a Católica, faz Cruzada contra os mouros

Encenação cinematográfica do rei mouro Boabdil.
Encenação cinematográfica do rei mouro Boabdil.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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continuação do post anterior: Isabel, a Católica, a rainha que empreendeu uma Cruzada


A cruzada contra os infiéis maometanos

Um dos maiores empenhos que Isabel teve em seu reinado foi mover a guerra santa contra o invasor muçulmano.

Para esse empreendimento, obteve do Papa as mesmas indulgências de Cruzada concedidas aos que iam lutar na Terra Santa, tendo o Sumo Pontífice lhe enviado uma cruz de prata para ir à frente de seus exércitos.

Nas várias campanhas que encetou, e sobretudo na reconquista de Granada, Isabel arrebatava seus soldados por sua energia sobre-humana, senso do dever e espírito sobrenatural.

Estes “criam que ela era uma santa. Como Santa Joana d’Arc, sempre lhes recomendava viver honestamente e falar bem. Não havia nem blasfêmias nem obscenidades no acampamento onde ela se achava, e viam-se curtidos soldados ajoelhar-se para rezar, enquanto se celebrava a missa ao ar livre por ordem da piedosa rainha”.(7)

A presença da soberana era para os guerreiros como uma garantia de vitória, pois lhes inspirava valor e confiança. Até os mouros admiravam a grande rainha, cantando sua bondade e beleza em suas canções, apesar de a temerem como inimiga.

Enquanto Fernando, um dos melhores guerreiros de sua época, comandava o exército, a rainha cuidava de toda a retaguarda, como recrutamento de reforços, envio de alimentos e munições, bem como projetava os hospitais — foi ela quem instituiu o primeiro hospital militar da História, e suas enfermeiras precederam as da Cruz Vermelha em mais de trezentos anos.

Cavalgava de um lugar a outro, indo mesmo aos acampamentos revestida de leve armadura de aço, para elevar o moral dos soldados. Mas essa rainha guerreira fazia questão de ela mesma costurar a roupa de seu marido, nunca usando o monarca outras senão as confeccionadas pelas hábeis mãos de Isabel ou de suas filhas.

Título glorioso de “Reis Católicos”

Um fato mostra a têmpera dessa rainha. No cerco de Granada, uma vela mal colocada ateou fogo na tenda ao lado da rainha, e desta propagou-se para todo o acampamento, que foi tomado pelas chamas. Os mouros, das muralhas, cantavam vitória.

O rei muçulmano Boabdil entrega as chaves de Granada à rainha e ao rei Fernando de Aragão, seu esposo. Francisco Pradilla y Ortiz (1848–1921).
O rei muçulmano Boabdil entrega as chaves de Granada à rainha e ao rei Fernando de Aragão, seu esposo.
Francisco Pradilla y Ortiz (1848–1921).
Mas a enérgica soberana, para mostrar sua determinação de conquistar a cidade, mandou edificar novo acampamento de pedra, surgindo assim uma verdadeira cidade à qual deu o nome de Santa Fé. Foi de lá que partiram as investidas contra Granada, obtendo-se sua capitulação.

O Papa Alexandre VI concedeu ao real casal, por seus serviços em prol da Cristandade, o título de Reis Católicos, em harmonia com o de Rei Cristianíssimo, concedido anteriormente ao monarca francês.

A política matrimonial que seguiram os Reis Católicos teve como intuito isolar a França, sua grande rival na época. Mas não tiveram felicidade com seus filhos.

A primogênita, também chamada Isabel, casou-se com o jovem príncipe português Afonso e, ao enviuvar precocemente, contraiu matrimônio com o seu herdeiro Dom Manuel, o Venturoso.

O príncipe João casar-se-ia com Margarida de Áustria, filha do Imperador Maximiliano I, mas morreria jovem. Joana, que entrará para a História como Joana a Louca, contraiu matrimônio com Felipe de Áustria, o Formoso, e tornou-se herdeira do trono que passou para seu filho, o futuro Carlos V.

Maria casa-se com seu cunhado, o viúvo Dom Manuel, e Catarina será a desafortunada esposa do lúbrico Henrique VIII, da Inglaterra.

“O bom governo dos soberanos católicos levou a prosperidade da Espanha ao seu apogeu e inaugurou a Idade de Ouro do país”.(8)

Três meses após a conquista de Granada, Isabel assinou uma ordem de expulsão dos judeus de seus territórios; e favoreceu a empresa de Cristóvão Colombo, que descobriria assim a América.

A morte de Isabel a Católica. Eduardo Rosales, Museu Nacional del Prado, Madri.
A morte de Isabel a Católica.
Eduardo Rosales, Museu Nacional del Prado, Madri.
A morte desta grande rainha foi muito lamentada pelos seus contemporâneos. Um deles deixou este depoimento:

“O mundo perdeu seu adorno mais nobre; uma perda que deve chorar não somente a Espanha, que ela já não levará mais no caminho da glória, mas todas as nações da Cristandade, porque ela era o espelho de todas as virtudes, o amparo do inocente e o sabre vingador do culpado.

“Não conheço ninguém de seu sexo, nos tempos antigos nem nos modernos, que, a meu juízo, possa equiparar-se com esta mulher incomparável”.(9)

Notas:
1. Luis Amador Sanchez, Isabel, a Católica, tradução de Mario Donato, Empresa Gráfica O Cruzeiro S. A., Rio de Janeiro, 1945, p. 55.
2. William Thomas Walsh, Isabel de España, tradução castelhana de Alberto de Mestas, Cultura Española, 1938, p. 49.
3. Ramón Ruiz Amado, DO, The Catholic Encyclopedia, Vol. VIII, transcrito por WGKofron, copyright © 1910 de Robert Appleton Company, online edition copyright © 1999 by Kevin Knight. 4. Id. ibid.
5. William Thomas Walsh, op.cit., p. 171.
6. (Site: www.artehistoria.com, Protagonistas de la História, Isabel la Católica.)
7. Walsh, op.cit., p. 160.
8. The Catholic Encyclopedia, online edition.
9. Carta de Pedro Mártir, um dos secretários da rainha, comunicando a morte de Isabel ao Arcebispo Talavera, in William Thomas Walsh, Isabel de España, p. 599.

(Fonte: revista "Catolicismo" nº 643, julho de 2004.




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