terça-feira, 23 de agosto de 2022

Santa Clotilde obteve a conversão da França

Santa Clotilde, jardim do Luxembourg, Paris
Santa Clotilde, estátua no jardim do Luxembourg, Paris.
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs




Santa Clotilde: esposa apostólica


Aconselhado pelos bispos católicos, Clóvis, rei dos Francos, pediu a mão da princesa Clotilde, sobrinha do rei Borguinhão, o qual havia assassinado os próprios pais para apoderar-se do trono.

Segundo uma tradição, o rei havia dado seu consentimento, mas depois arrependeu-se e mandou uma escolta atrás de Clotilde.

Esta, entretanto, conseguiu chegar ilesa até a fronteira franca, onde Clóvis a aguardava.

Esse casamento foi providencial, pois tanto o rei burguinhão quanto o dos visigodos eram arianos e oprimiam seus súditos, que eram na maioria católicos.

Ora, Clotilde mantivera-se fiel filha da Igreja, e começou a trabalhar junto a seu marido para convertê-lo à verdadeira fé.

Santa Clotilde, igreja de Saint Germain l'Auxerrois, Paris
Santa Clotilde, estátua na igreja
de Saint-Germain-l'Auxerrois, Paris.
A conversão de Clóvis

Entretanto a graça ia trabalhando a alma de Clóvis. Em 496, durante a batalha de Tolbiac contra os alamanes, o rei franco viu que seu exército estava a ponto de ser aniquilado.

Lembrou-se então do "Deus de Clotilde".

Ajoelhou-se e, com os braços para o céu, prometeu a Jesus Cristo que, se Este lhe concedesse a vitória, nEle creria.

Imediatamente a batalha tomou outro rumo, e os alamanes foram derrotados.

A rogos de Santa Clotilde, São Remígio encarregou-se de instruir Clóvis e seus francos na fé católica.

Contam as crônicas que, quando o santo Arcebispo narrava a Paixão de Cristo àqueles bárbaros, Clóvis ficava indignado com as sevícias que infligiram ao Salvador e, batendo com sua lança no solo, exclamava:

"Ah! Por que não estava eu lá com os meus francos!".

No dia de Natal de 496 foi celebrado solenemente o batismo do rei franco, de sua irmã, e de três mil de seus guerreiros.

Todo o caminho até a catedral de Reims estava engalanado com flores e florões.

O templo sagrado, ricamente adornado, brilhava à luz de uma infinidade de velas em meio a nuvens de incenso.

O rei bárbaro, emocionado, perguntou a São Remígio: "Santo Padre, é este o Céu?"

No momento em que o batizava, disse São Remígio as célebres palavras: "Curva a cabeça, sicambro [um dos nomes dados aos francos]; ama o que queimaste, e queima o que adoraste".

Batismo de Clovis, Reims
O batismo de Clóvis, escultura em Reims
Em seguida dar-se-ia a sagração do rei. Em meio à multidão que lotava a igreja, não era possível ir buscar o óleo na sacristia.

Então surgiu no ar uma bela pomba branca, trazendo no bico uma ampola de óleo.

Essa ampola serviu depois para a sagração de todos os reis franceses até Luís XVI, e só foi quebrada pelo deputado Rommé durante a malfadada Revolução Francesa.

Uma alma piedosa extraiu óleo da ampola antes desse crime sacrílego.

Com esse óleo foi reconstituído o bálsamo sagrado e utilizado na sagração do último rei legítimo Luis XVIII.





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terça-feira, 9 de agosto de 2022

Santo Odon: resplandecente abade de Cluny

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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A figura luminosa de Santo Odon, abade de Cluny se coloca no medievo monástico, que viu a surpreendente difusão na Europa da vida e da espiritualidade inspiradas na Regra de São Bento.

Ocorreu, durante aqueles séculos, um prodigioso surgimento e multiplicação de claustros que, ramificando-se no continente, difundiram nele o espírito e a sensibilidade cristãos.

Santo Odon nos leva, em particular, a um mosteiro, Cluny, que durante a Idade Média foi um dos mais ilustres e celebrados, e ainda hoje revela, através de suas ruínas majestosas, as marcas de um passado glorioso por sua intensa dedicação à ascese, ao estudo e, de forma especial, ao culto divino, envolvido pelo decoro e pela beleza.

Odon foi o segundo abade de Cluny. Nasceu em 880, nos confins entre Maine e Touraine, na França. Foi consagrado pelo seu pai ao santo bispo Martinho de Tours, a cuja sombra benéfica e em cuja memória Odon passou toda a sua vida, concluindo-a perto de seu túmulo.

A escolha da consagração religiosa esteve nele precedida pela experiência de um momento especial de graça, do qual ele mesmo falou a outro monge, João o Italiano, que depois foi seu biógrafo.
Odon era ainda adolescente, por volta dos 16 anos, quando, em uma vigília de Natal, sintiu como lhe saía espontaneamente dos lábios esta oração a Nossa Senhora:

“Minha Senhora, Mãe de misericórdia, que nesta noite destes à luz o Salvador, rezai por mim. Que vosso parto glorioso e singular seja, oh, a mais pia, meu refúgio” (Vita sancti Odonis, I,9: PL 133,747).


O apelativo “Mãe de misericórdia”, com o qual o jovem Odon invocou então Nossa Senhora, será aquele com o qual ele sempre quis se dirigir a Maria, chamando-a também de “única esperança do mundo (...), graças à qual nos foram abertas as portas do paraíso” (In veneratione S. Mariae Magdalenae: PL 133,721).

Naquele tempo, ele começou a aprofundar na Regra de São Bento e a observar alguns dos seus mandatos, “carregando, ainda sem ser monge, o leve jugo dos monges” (ibidem, I,14: PL 133,50).

Em um dos seus sermões, Odon se referiu a São Bento como “farol que brilha na tenebrosa etapa desta vida” (De sancto Benedicto abbate: PL 133,725) e o qualificou como “mestre de disciplina espiritual” (ibidem: PL 133,727).

Com afeto, revelou que a piedade cristã, “o recorda com a mais viva doçura”, consciente de que Deus o elevou “entre os sumos e eleitos Padres da santa Igreja” (ibidem: PL 133,722).

Fascinado pelo ideal beneditino, Odon deixou Tours e entrou como monge na abadia beneditina de Baume, para passar depois à de Cluny, da qual se converteu em abade em 927.

A partir deste centro de vida espiritual, ele pôde exercer uma ampla influência nos mosteiros do continente. De sua guia e reforma beneficiaram-se também, na Itália, diversos cenóbios, entre eles o de São Paulo Fora dos Muros.

Odon visitou Roma mais de uma vez, chegando também a Subiaco, Monte Cassino e Salerno. Foi precisamente em Roma que, no verão de 942, ele ficou doente. Sentindo-se perto da morte, com todos os esforços, quis voltar junto a São Martinho, onde morreu durante a oitava do santo, no dia 18 de novembro de 942.

Seu biógrafo, ao sublinhar em Odon a “virtude da paciência”, oferece um longo elenco de suas demais virtudes, como o desprezo do mundo, o zelo pelas almas, o compromisso pela paz das Igrejas etc.

Grandes aspirações do abade Odon eram a concórdia entre o rei e os príncipes, a observância dos mandamentos, a atenção aos pobres, a correção dos jovens, o respeito aos idosos (cf. Vita sancti Odonis, I,17: PL 133,49).

Ele amava a pequena cela em que residia, “afastado dos olhos de todos, preocupado somente com agradar Deus” (ibidem, I,14: PL 133,49). Não deixava, no entanto, de exercitar também, como “fonte superabundante”, o ministério da palavra e do exemplo, “chorando este mundo como imensamente mísero” (ibidem, I,17: PL 133,51).

Em um só monge, comenta seu biógrafo, encontravam-se unidas as diversas virtudes existentes de forma dispersa nos demais mosteiros: “Jesus, em sua bondade, baseando-se nos diversos jardins dos monges, formava em um pequeno lugar um paraíso, para regar a partir da sua fonte os corações dos fiéis” (ibidem, I,14: PL 133,49).

Em uma passagem de um sermão em honra de Maria Madalena, o abade de Cluny nos revela como concebia a vida monástica: “Maria, que, sentada aos pés do Senhor, com espírito atento, escutava sua palavra, é o símbolo da doçura da vida contemplativa, cujo sabor, quanto mais é degustado, mais induz a alma a desapegar-se das coisas visíveis e dos tumultos das preocupações do mundo” (In ven. S. Mariae Magd., PL 133,717).

Esta é uma concepção que Odon confirma em outros escritos seus, dos quais se transluz seu amor pela interioridade, uma visão do mundo como realidade frágil e precária da qual é preciso desarraigar-se, uma constante inclinação ao desapego das coisas consideradas como fonte de inquietude, uma aguda sensibilidade pela presença do mal nas diversas categorias de homens, uma íntima aspiração escatológica.

Esta visão de mundo pode parecer bastante afastada da nossa e, no entanto, a de Odon é uma concepção que, vendo a fragilidade do mundo, valoriza a vida interior aberta ao outro, ao amor ao próximo e, precisamente assim, transforma a existência e abre o mundo à luz de Deus.

Merece uma particular menção a “devoção” ao Corpo e Sangue de Cristo que Odon, frente a um estendido abandono, vivamente deplorado por ele, cultivou sempre com convicção.

Ele estava firmemente convencido da presença real, sob as espécies eucarísticas, do Corpo e do Sangue do Senhor, em virtude da conversão “substancial” do pão e do vinho.

Ele escrevia: “Deus, Criador de tudo, tomou o pão, dizendo que era seu Corpo e que o havia oferecido para o mundo, e distribuiu o vinho, chamando-o de seu Sangue”; portanto, “é lei de natureza que se dá a mutação segundo o mandato do Criador” e, por isso, “imediatamente, a natureza transforma sua condição habitual: sem dúvida, o pão se converte em carne e o vinho se converte em sangue”; à ordem do Senhor, “a substância muda” (Odonis Abb. Cluniac. occupatio, ed. A. Swoboda, Lipsia 1900, p.121).

Infelizmente, anota o próprio abade, este “sacrossanto mistério do Corpo do Senhor, em que consiste toda a salvação do mundo” (Collationes, XXVIII: PL 133,572), é celebrado com negligência.

“Os sacerdotes – adverte – que acedem ao altar indignamente, mancham o pão, isto é, o Corpo de Cristo” (ibidem, PL 133,572-573).

“Somente quem está unido espiritualmente a Cristo pode participar dignamente do seu Corpo eucarístico: caso contrário, comer sua carne e beber seu sangue não seria seu benefício, mas sua condenação” (cf. ibidem, XXX, PL 133,575).

Tudo isso nos convida a crer com nova força e profundidade na verdade da presença do Senhor. A presença do Criador entre nós, que se entrega em nossas mãos e nos transforma como transforma o pão e o vinho, transforma, assim, o mundo.

Santo Odon foi um verdadeiro guia espiritual, tanto para monges como para os fiéis da sua época. Frente à “vastidão dos vícios” difundidos na sociedade, o remédio que ele propunha com decisão era o de uma mudança radical de vida, fundada sobre a humildade, a austeridade, o desapego das coisas efêmeras e a adesão às eternas (cf. Collationes, XXX, PL 133, 613).

Apesar do realismo do seu tempo, Odon não se rende ao pessimismo. “Não dizemos isso – precisa – para precipitar no desespero daqueles que gostariam de converter-se. A misericórdia divina está sempre disponível; ela espera a hora da nossa conversão” (ibidem: PL 133, 563).

E exclama: “Ó inefáveis entranhas da piedade divina! Deus persegue as culpas e, no entanto, protege os pecadores” (ibidem: PL 133,592). Apoiado nesta convicção, o abade de Cluny amava deter-se na contemplação da misericórdia de Cristo, o Salvador que ele qualificava sugestivamente como “amante do homem”, amator hominum Christus (ibidem, LIII: PL 133,637): “Jesus tomou sobre si os flagelos que correspondiam a nós – observa – para salvar, assim, a criatura que é obra sua e à qual ama” (cf. ibidem: PL 133, 638).

Aparece aqui uma característica do santo abade à primeira vista quase escondida sob o rigor de sua austeridade de reformador: a profunda bondade de sua alma.

Ele era austero, mas sobretudo era bondoso, de uma bondade que provém do contato com a bondade divina. Odon – assim dizem seus coetâneos – difundia a alegria de que estava repleto. Seu biógrafo testifica não ter ouvido jamais sair de sua boa de homem “tanta doçura de palavra” (ibidem, I,17: PL 133,31).

Ele costumava convidar para cantar crianças que encontrava pelo caminho e depois lhes dava algum pequeno presente, e acrescenta: “Suas palavras estavam cheias de exultação (...); sua hilaridade infundia em nosso coração uma íntima alegria” (ibidem, II, 5: PL 133,63).

(Fonte: S.S. Bento XVI, audiência geral 14.10.2009, ZP09101415)




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terça-feira, 26 de julho de 2022

O batismo de sangue de São Nuno Alvares

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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Este moço, que Leonor Teles, pasmada do seu ardimento de criança, por suas mãos armou cavaleiro aos treze anos de idade, servindo-se do pequeno arnês do Mestre de Avis, e depois andou por morador em casa de el-rei, como escudeiro da rainha, tem agora vinte e dois anos.

De pouca figura, ruivo como cenoura, rosto afiado, face seca de um vermelho sujo de sardas, aqui e acolá, no buço e no mento, punge uma penugem de faúlhas de oiro.

Todo o valor expressivo está na testa alta e larga, na boca miúda de lábios de reza e no sonho pertinaz de dois pequenos e estranhos olhos azuis, cândidos e enérgicos, que no fundo das órbitas concentram pureza e poder.

De pequena estatura, vergonhoso e calado, vive para si, vive para dentro.

Parece calmo. Súbito explodem naquele corpo estreito rebentinas bravas, e todo o seu místico ser se agita, se transforma em ação, que derrui com violência e edifica com beleza.

É a piedade feita energia, a oração feita espada. A idéia de bem servir seu reino e seu rei é nele obcecante.

E este sentimento, feito de muitos sentimentos, enche-o, exalta-o.

Assim pensando e sentindo, esta alma nobre vive, por esse tempo, esmagada nas suas aspirações e ofendida pelo que vê em volta de si. Nuno Álvares é violentado a assistir, de braços cruzados, aos enxovalhos cuspidos sobre a sua amada terra, que ingleses, vindos para a defender, saqueiam, e castelhanos já pisam para a possuir e arrebatar.

Freme. Contorce-se. Derranca-se. Desde o inverno busca lutar, e não lho permite o irmão. Requesta o inimigo para duelos, dez contra dez, e proíbe-lho o rei. Tanto empacho enoja-o.

Nuno Álvares vive cerrado num colete de varas de ferro. O sangue ferve-lhe. Por que o não deixam pelejar? Pouca gente?

Os seus trinta companheiros minhotos, "homens para feitos", valem por trezentos; e ele, por um exército! Nuno Álvares sente que tem em si a graça de Deus que o esclarece, o incendeia e o atrai, semblante transfigurado, para os chãos das batalhas, onde os triunfos acorrerão a ele.

Santos e arcanjos, descidos do Céu, guerrearão a seu lado. Guerra santa! Esta fé dura e cega. É um enviado de Deus, e tem uma obra a realizar. Não o tolham. Furacão de aço e de fogo, tudo varrerá, tudo purificará. Deixem-no!

Os castelhanos, com suas oitenta galés ancoradas no Tejo, vêm à cidade em batéis, amiudadas vezes, roubar o que lhes apetece, afrontando a todos com suas visagens escarnidas, suas armas arrogantes, enxovalhando por atos e ditos os alevantados corações portugueses. Uma vergonha!

Nuno Álvares, rugindo, não se contém. Reúne os seus chegados, e em segredo combina com eles uma cilada ao inimigo, que precisa de tremenda lição.

Na manhã do dia seguinte, na ponte de Alcântara, os castelhanos, segundo seu costume, desembarcam e roubam uvas numa vinha. Nuno Álvares e os seus, ocultos, os espiam por detrás de valados.

De repente lhes caem em cima, à lançada, desbaratando-os, obrigando-os a debandar espavoridos, pelo outeiro abaixo, a correr até à riba, onde precipitadamente se atiram à água, fugindo a nado para as suas naus.

Mas já os outros castelhanos, que estão a bordo e de longe vêem o que se passa, se armam à pressa, saltam nos batéis e remam para a margem. Vão castigar com a morte esse punhado de portugueses atrevidos. Os castelhanos são mais de duzentos; os portugueses, uns cinqüenta somente, entre besteiros, homens de cavalo e de pé. Firmes, esperam. Os outros avançam. Nuno Álvares exulta de alegria. A sua alma enche-se de sol. Vai, enfim, pelejar!

"Amigos — grita aos companheiros, com voz estrondosa e augusta — por nossa honra! A eles, a eles! Deus é conosco". Mas os outros replicam-lhe, prudentes: "Mestre, os castelhanos são dez vezes mais do que nós".

"Não importa! — bradou de novo Nuno Álvares, com voz vinda do fundo do coração, vinda de outros mundos — A eles, a eles! Segui-me. Fazei o que eu fizer. Serei o primeiro. Sejamos um!"

Ia avançar. Mas vendo que os companheiros não se moviam, Nuno Álvares afastou-se, ajoelhou em terra e, todo dentro de si, orou de mãos postas a São Jorge. A sua alma mística viveu esse rápido momento em luz celeste, iluminando-se de puras claridades, temperando-se de energias sobre-humanas, despertadas no fundo do seu ser pela inspiração sublimada.

Depois montou de um pulo, firmou-se na sela de alto arção, sofregou as rédeas, esporeou rijamente o corcel nervoso, couraçado de testeira e peitoral de ferro, e pôs no inimigo o olhar resoluto.

Num paroxismo de intrepidez, como se fora a própria chama do espírito armado e alado quem galopasse, atirou-se numa arrancada doida, num clarão, numa transfiguração — o corpo em fogo, a alma em luz, nos olhos um rir de divina alegria, na boca uma flor de divina reza — atirou-se para esse extenso e espesso sendeiro de duzentas lanças em riste, contra o qual a sua virginal armadura de aço e de fé se chocou ardidamente.

A espada de Nuno Álvares, vibrada de trás das costas, fende para a direita, fende para a esquerda, fende de través, ataca de chuço, espedaçando capelos, talhando broquéis, esmigalhando lorigas, sempre brandida por esse braço de ferro que uma alma religiosa vitaliza, incendiando-o de coragem, de virtude, a romper caminho, a abrir clareiras de sangue em volta de si, a limpar de inimigos a terra santa da pátria adorada.

Seu cavalo empinado, com olhos em chama e narinas em brasa, lampejando na testeira, atira-se aos galões, esmagando corpos caídos por terra, ferindo lume com as ferraduras bravas, nos arneses, nos escudos, nos ferros das lanças partidas que cobrem o chão.

A espada miraculosa de Nuno Álvares continua ingente, descarregando golpadas de fogo.

Sobre ele, sobre a sua intemerata armadura, ressoam os golpes dos montantes, os encontros das lanças, as pancadas das pedras e os arremessos dos virotões. O cavalo, lanceado no peito, no pescoço, nas ancas, a espadanar sangue, cai para morrer.

No espernear da agonia, engancha um ferro numa solha da armadura de Nuno Álvares, que, tendo caído com ele, fica preso no corcel. Por terra, Nuno Álvares brande sempre a espada furiosa e religiosa.

O desastre é fatal; a morte, iminente. Mas já ao longe surge uma chusma de companheiros, acorrendo.

Chegam e desprendem-no. Nuno Álvares levanta-se de um pulo. Toma nas mãos, cheias de sangue, uma das muitas lanças abandonadas que jazem em volta dele.

E à frente dos seus, alucinado, corre à lançada os castelhanos, derrubando-os, esmagando-os, matando-os.

O inimigo foge. O campo fica varrido. Vencera!

E este foi o seu batismo de sangue. Sangue que depois, na ardência das batalhas, efervesceu e explodiu em bravuras sublimes!

(Fonte: Antero de Figueiredo, "Leonor Teles")




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terça-feira, 5 de abril de 2022

Godofredo de Bouillon: milagres prévios à tomada de Jerusalém

Luis Dufaur
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No transcurso da Cruzada em que Godofredo de Bouillon era um dos comandantes aconteceu o cerco de Antioquia.

Era inverno, vieram as chuvas, e as enfermidades atingiram homens e animais. O exército cruzado ficou reduzido à metade.

A primavera trouxe uma melhora. Sobretudo devido a reforços vindos por mar, os cruzados conquistaram afinal a cidade.

Por pouco tempo, pois três dias depois os turcos voltaram com mais de 200 mil homens e cercaram Antioquia.

A fome e a doença abateram-se novamente sobre os sitiados.

Foi quando um sacerdote da Provença, Pedro Bartolomeu, anunciou que Nosso Senhor lhe havia aparecido em sonhos e revelado onde estava enterrada a lança que atravessara seu peito adorável.

Com efeito, junto ao altar da igreja de São Pedro encontraram uma lança.

Esse fato sobrenatural deu novo ânimo aos cristãos que, tomados de entusiasmo, caíram sobre os muçulmanos, apesar da desproporção numérica.

Alguns afirmaram ter visto São Jorge conduzindo a batalha. Com a vitória, Boemundo estabeleceu-se como senhor de Antioquia.

O mesmo impulso poderia ter levado imediatamente à conquista da Cidade Santa. Mas o cansaço, a falta de cavalos, e sobretudo a contenda entre os príncipes cristãos, além de outra peste devastadora que ceifou a vida de 50 mil soldados, diminuíram em muito o número de cruzados que se dirigiram a Jerusalém.

Sitio de JerusalemA cidade estava fortificada e bem defendida por mais de 40 mil homens.

No dia 7 de junho de 1099 os cruzados a cercaram. Novamente todos os sofrimentos de um sítio prolongado, como a sede sob um sol abrasador de verão, castigaram os cavaleiros da Cruz.

Finalmente, “Godofredo viu no Monte das Oliveiras um homem com brilhante escudo: ‘São Jorge vem em nosso auxílio!’” — exclamou.

Entusiasmados, os guerreiros cristãos empurraram as torres de combate para junto das muralhas da cidade.

Estenderam pontes, e Godofredo foi um dos primeiros a saltar, correndo para abrir as portas.

O exército, como a enchente de um rio, penetrou na cidade.

“O sangue corria pelas escadas e chegava até as patas dos cavalos”. “Foi um juízo de Deus”, afirma o cronista Guilherme de Tyro, “que os que haviam profanado o Santuário do Senhor com ritos supersticiosos, e o haviam tirado do povo fiel, expiassem o crime com seu próprio sangue e extermínio”.

Depois os cruzados se lavaram, e com sentimentos de piedade foram andando pelos lugares santos, osculando-os “com grande devoção, humildade e coração contrito, entre soluços e lágrimas”.


(Fonte: CATOLICISMO)



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