quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A morte de Gonçalo Mendes da Maia, «O Lidador» ‒ V

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs







CAPÍTULO VII

Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes que no mês de julho de 1170 se deram na veiga da fronteira de Beja, notá-los-á de fábulas sonhadas; porque nós, homens corruptos e enfraquecidos por ócios e prazeres de vida afeminada, medimos por nossos ânimos e forças, a força e o ânimo dos bons cavaleiros portugueses do século XII; e todavia, esses golpes ainda soam, através das eras, nas tradições e crônicas, tanto cristãs como agarenas.

Depois de deixar assinadas muitas armaduras mouriscas, o Lidador vibrara pela última vez a espada e abrira o elmo e o crânio de um cavaleiro árabe.

O violento abalo que experimentou lhe fez rebentar em torrentes o sangue da ferida que recebera das mãos de Almoleimar e, cerrando os olhos, caiu morto ao pé do Espadeiro, de Mem Moniz e de Afonso Hermingues de Baião, que com eles se ajuntara.

Repousou, finalmente, Gonçalo Mendes da Maia de oitenta anos de combates!

Já a este tempo cristãos e mouros se haviam descido dos cavalos e pelejavam a pé.

Traziam-se assim à vontade, e recrescia a crueza da batalha.

Entre os cavaleiros de Beja espalhou-se logo a nova da morte do seu capitão, e não houve ali olhos que ficassem enxutos.

O despeito do próprio Mem Moniz deu lugar à dor, e o velho de Riba-Douro exclamou entre soluços:

— Gonçalo Mendes, és morto! Nós todos quantos aqui somos, não tardará que te sigamos; mas ao imenso, nem tu, nem nós ficaremos sem vingança!

— Vingança! — bradou o Espadeiro com voz rouca, e rangendo os dentes. Deu alguns passos e viu-se o seu montante reluzir, como uma centelha em céu proceloso.

Era Ali-Abu-Hassan: Lourenço Viegas o conhecera pelo timbre real do morrião.

CAPÍTULO VIII 

Se já vivestes vida de combates em cidade sitiada, tereis visto muitas vezes um vulto negro que em linha diagonal corta os ares, sussurrando e gemendo.

Rápido, como um pensamento criminoso em alma honesta, ele chegou das nuvens à terra, antes que vos lembrásseis do seu nome.

Se encontrou na passagem ângulo de torre secular, o mármore converte-se em pó; se atravessou, pelas ramas de árvore basta e frondosa, a folha mais virente e frágil, o raminho mais tenro é dividido, como se, com cutelo sutilíssimo, mão de homem lhe houvera cerceado atentamente uma parte; e, todavia, não é um ferro açacalado: é um globo de ferro; é a bomba, que passa, como a maldição de Deus.

Depois, debaixo dela, o chão achata-se e a terra espadana aos ares; e, como agitada, despedaçada por cem mil demônios, aquela máquina do inferno estoura, e de roda dela há um zumbir sinistro: são mil fragmentos; são mil mortes que se derramam ao longe.

Então faz-se um grande silêncio vêem-se corpos destroncados, poças de sangue, arcabuzes quebrados, e ouvem-se o gemer dos feridos e o estertor dos moribundos.

Tal desceu o montante do Espadeiro, roto dos milhares de golpes que o cavaleiro tinha descarregado.

O elmo de Ali-Abu-Hassan faiscou, voando em pedaços pelos ares, e o ferro cristão esmigalhou o crânio do infiel, abriu-o até os dentes. Ali-Abu-Hassan caiu.

— Lidador! Lidador! — disse Lourenço Viegas, com voz comprimida.

As lágrimas misturavam-se-lhe nas faces com o suor, com o pó e com o sangue do agareno, de que ficou coberto. Não pôde dizer mais nada.

Tão espantoso golpe aterrou os mouros. Os portugueses seriam já apenas sessenta, entre cavaleiros e homens d'armas: mas pelejavam como desesperados e resolvidos a morrer.

Mais de mil inimigos juncavam o campo, de envolta com os cristãos.

A morte de Ali-Abu-Hassan foi o sinal da fugida.

Os portugueses, senhores do campo, celebravam com prantos a vitória. Poucos havia que não estivessem feridos; nenhum que não tivesse as armas falsadas e rotas.

O Lidador e os demais cavaleiros de grande conta que naquela jornada tinham acabado, atravessados em cima dos ginetes, foram conduzidos a Beja.

Após aquele tristíssimo préstito, iam os cavaleiros a passo lento, e um sacerdote templário, que fôra na cavalgada com a espada cheia de sangue metida na bainha, salmodiava em voz baixa aquelas palavras do livro da Sabedoria:

“Justorum autem animae in manu Dei sunt, et non tangent illos tormentum mortis”.


FIM


(Fonte: Universidade de Amazonia . NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal, CEP: 66060-902, Belém – Pará, www.nead.unama.br, e-mail: nead@unama.br)



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