terça-feira, 28 de novembro de 2023

Os heróis da caridade: sublime equilíbrio da Igreja ante a miséria e a doença

Santa Isabel de Hungría
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






(...) Contudo, os leprosos continuavam sempre a ser o objeto de sua predileção (de Santa Isabel de Hungria) e de algum modo até de sua inveja, pois (a lepra) era, entre todas as misérias humanas, aquela que melhor podia desapegar suas vítimas da vida.

Frei Gérard, Provincial dos franciscanos da Alemanha, que era, depois de mestre Conrad, o confidente mais íntimo de seus piedosos pensamentos, vindo um dia visitá-la, ela pôs-se a falar longamente sobre a santa pobreza.

Pelo fim da conversa exclamou:

“Ah!, meu Pai, o que eu quereria antes de tudo e do fundo do meu coração, seria ser tratada em todas as coisas como uma leprosa qualquer. Quisera que se fizesse para mim, como se faz para essa pobre gente, uma pequena choupana de palha e feno, e que se pendurasse diante da porta um pano, para prevenir os transeuntes, e uma caixa, para que nela se pudesse colocar alguma esmola”. 

Com essas palavras, perdeu o conhecimento e ficou numa espécie de êxtase, durante o qual o Padre Provincial, que a sustentava, ouviu-a cantar hinos sacros; depois disto voltou a si.

Seja-nos permitido, para explicar essas prodigiosas palavras de nossa santa, introduzir aqui em nossa narração alguns detalhes sobre o modo pelo qual a lepra e os desafortunados por ela atingidos, foram considerados durante os séculos católicos.

Naqueles tempos de fé universal, a Religião podia lutar de frente contra todos os males da sociedade, da qual ela era a soberana absoluta.

Àquela triste miséria suprema a Igreja opunha todas as mitigações que a fé e a piedade sabem gerar nas almas cristãs. Não podendo extinguir os deploráveis resultados materiais do mal, ela sabia pelo menos acabar com a reprovação moral que podia prender-se àquelas infelizes vitimas.

Ela as revestia de uma espécie de sagração piedosa e as constituía como as representantes e pontífices de peso das dores humanas que Jesus Cristo viera carregar, e que os filhos de Sua Igreja têm como primeiro dever abrandar em seus irmãos.

A lepra tinha, pois, naquela época, qualquer coisa de sagrado aos olhos da Igreja e dos fiéis: era um dom de Deus, uma distinção especial, uma expressão, por assim dizer, da atenção divina.

Os anais da Normandia contam que um cavaleiro de muito ilustre linhagem, Raoultz Fitz-Giroie, um dos valentes do tempo de Guilherme o Conquistador, tendo-se tornado monge, pediu humildemente a Deus, como uma graça particular, ser atingido por uma lepra incurável, a fim de resgatar assim seus pecados.

Deveres da caridade, Holy Cross, Gilling East, Yorkshire
Deveres da caridade, Holy Cross, Gilling East, Yorkshire
E foi atendido... A mão de Deus, de Deus sempre justo e misericordioso, havia tocado um católico, o havia atingido de uma maneira misteriosa e inacessível para a ciência humana. Desde então havia alguma coisa de venerável em seu mal.

A soledade, a reflexão, e o retiro junto apenas de Deus, tornavam-se uma necessidade para o leproso.

Mas o amor e as preces de seus irmãos o seguiam em seu isolamento. A Igreja soube conciliar a mais terna solicitude para com esses rebentos desafortunados de seu seio com as medidas exigidas pela saúde de todos para impedir a extensão do contágio.

Quiçá não haja em sua liturgia nada de mais tocante, e ao mesmo tempo de mais solene, do que o cerimonial denominado ‘separatio leprosorum’, com o qual procedia-se ao afastamento daquele que Deus havia atingido, nos povoados onde não havia hospital especialmente consagrado aos leprosos.

Celebrava-se, com a presença do leproso, a Missa dos mortos, após tendo benzido todos os utensílios que lhe deveriam servir na sua solidão.

E, depois de que cada assistente lhe tivesse dado sua esmola, o clero, precedido de Cruz e acompanhado por todos os fiéis, conduzia-o a uma cabana isolada que lhe era assinalada por moradia. Sobre o telhado dessa choupana o padre colocava terra do cemitério, dizendo ‘Sis mortuus mundo, vivens iterum Deo’ (“Morre para o mundo, e renasce para Deus!”).

O padre lhe dirigia a seguir um sermão consolador, no qual lhe fazia entrever as alegrias do Paraíso e sua comunhão espiritual com a igreja, cujas preces eram por ele adquiridas em sua solidão mais ainda do que anteriormente.

Depois ele plantava uma cruz de madeira diante da porta da cabana, aí colocava uma caixa para receber a esmola dos transeuntes, e todos se afastavam...

Apenas na Páscoa os leprosos pediam sair de seus “túmulos”, como o próprio Cristo, e entrar por alguns dias nas cidades e aldeias para participar das alegrias universais da Cristandade.

Quando morriam assim isolados, celebravam-se por eles os funerais com o ofício dos Confessores não-Pontífices.

O pensamento da Igreja tinha sido compreendido por todos seus filhos. Os leprosos recebiam do povo os nomes mais doces e mais consoladores; chamava-se-lhes os 'doentes de Deus’, os ‘queridos pobres de Deus’, os ‘bons’.

Gostava-se de lembrar que o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo tinha sido designado, pelo Espírito Santo, como um leproso: ‘Et nos putavimus Eum quasi leprosum’; Ele tinha um leproso como anfitrião quando Maria Magdalena veio Lhe ungir os pés; Ele escolhera o leproso Lázaro como símbolo da alma eleita. Ele, com freqüência, tomara essa forma para aparecer a Seus santos sobre a terra.

Acresce que foi principalmente depois das peregrinações na Terra Santa e nas Cruzadas que a lepra se tinha espalhado pela Europa. Essa origem aumentava seu caráter sagrado.

Uma Ordem de Cavalaria, a de São Lázaro, fora fundada em Jerusalém para se consagrar exclusivamente aos cuidados dos leprosos, e tinha um leproso como grão-mestre; e uma Ordem feminina devotara-se ao mesmo fim na mesma cidade, no hospital Saint-Jean l’Aumônier.

Certa vez que o Bispo Hugo de Lincoln – do Franco-Condado por nascimento e cartuxo por religião – celebrava a Missa, admitiu os leprosos ao ósculo da paz; e como seu chanceler o lembrasse que São Martinho curava os leprosos beijando-os, o Bispo respondeu: “Sim, o ósculo de São Martinho curava a carne dos leprosos, mas a mim é o ósculo dos leprosos que cura minha alma”.

Entre os reis e os grandes da terra, nossa Isabel não foi a única a honrar Cristo nos sucessores de Lázaro. Príncipes ilustres e poderosos consideravam esse dever como uma das prerrogativas de suas coroas.

Roberto, Rei da França, visitava sem cessar seus hospitais. São Luís tratava-os com uma amizade toda fraterna, visitando-os no Quatre-Temps, e osculava suas chagas. Henrique III, Rei da Inglaterra, fazia o mesmo.

A condessa Sibila de Flandres, tendo acompanhado seu marido Teodorico a Jerusalém, em 1156, passava o tempo que o conde empregava em combater os infiéis no hospital de Saint-Jean l'Aumônier para aí cuidar dos leprosos. Um dia em que ela lavava as chagas desses infortunados, sentiu, como nossa Isabel, seu coração sublevar-se contra tão repugnante ocupação.

Mas, logo em seguida, para se castigar, tomou na boca a água da qual acabava de se servir e a engoliu, dizendo a seu coração:

“É preciso que aprendas a servir a Deus nesses pobres; eis teu oficio, mesmo que arrebentes”. 

Quando seu marido deixou a Palestina, ela pediu-lhe permissão para aí ficar, a fim de consagrar o resto de seus dias ao serviço dos leprosos.

Seu irmão, Balduino III, Rei de Jerusalém, juntou seus rogos aos daquela heroína da caridade; o conde resistiu prolongadamente, e não consentiu em separar-se de Sibila senão depois de ter recebido do Rei, seu cunhado, como recompensa pelo sacrifício, uma gota do Sangue de Nosso Senhor, recolhido por José de Arimatéia, na ocasião da deposição da Cruz.

Santa Catarina de Siena

Ele, então, retornou só à sua pátria, levando consigo esse tesouro sagrado, que foi depositar em sua cidade de Bruges; e os piedosos povos de Flandres tomaram conhecimento com grande veneração de como seu conde tinha “vendido” sua esposa a Cristo e aos pobres, e como ele lhes trazia, como preço desse “negócio”, o Sangue de seu Deus.

Mas, sobretudo, foram os santos da Idade Média que testemunharam aos leprosos um devotamento sublime.

Santa Catarina de Siena teve suas mãos atingidas pela lepra ao cuidar de uma velha leprosa que ela própria quis amortalhar e enterrar; mas, depois de ter assim perseverado até o fim no sacrifício, viu suas mãos tornarem-se brancas e puras como as de um recém-nascido, e uma suave luz sair das partes que tinham sido mais atacadas.

São Francisco de Assis e Santa Clara, sua nobre seguidora; Santa Odília da Alsácia, Santa Judith da Polônia, Santo Edmundo de Canterbory, e mais tarde São Francisco Xavier e Santa Joana de Chantal compraziam-se em proporcionar aos leprosos os mais humildes serviços. Freqüentemente suas preces obtinham uma cura instantânea.

É no seio dessa gloriosa companhia que Isabel ocupava já lugar pelos anseios invencíveis de seu coração para o Deus que ela sempre via na pessoa dos pobres; mas, enquanto esperava poder gozar com eles as alegrias eternas no céu, nada bastava na terra para aquietar o ardor da compaixão que devorava seu coração, nem para curar os langores dessa alma enferma e dilacerada pelos sofrimentos dos seus irmãos.



(Autor: Charles de Montalembert, « Histoire de Sainte Élisabeth de Hongrie », Pierre Téqui, Libraire Éditeur, Paris, 1930, T.11, pp. 114-122)



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terça-feira, 14 de novembro de 2023

O invicto São Fernando III, Rei de Leão e Castela ‒ 2

São Fernando, altar de Sevilha
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
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Continuação do post anterior

Reconquistando os reinos mouros para Cristo

Após a vitória cristã em Navas de Tolosa os reinos muçulmanos da Espanha entraram em decadência, favorecendo a incorporação de muitos deles ao domínio de São Fernando por meio de pactos ou conquistas.

Os contemporâneos descrevem três grandes virtudes nesse grande guerreiro: a rapidez, a prudência e a perseverança. Quando os inimigos o criam em um lado, ele aparecia no outro. E sabia prolongar os assédios para economizar sangue.4

Foram inúmeras as campanhas guerreiras de São Fernando em sua reconquista da Espanha para Nosso Senhor Jesus Cristo.

O rei-santo tinha apenas 25 anos quando entrou pela primeira vez na Andaluzia. O rei mouro de Baeza veio oferecer-lhe obediência, dizendo-lhe que estava pronto a render sua cidade e assisti-lo com dinheiro e alimentos.

Em 1235, enquanto São Fernando se apoderava de Ubeda e as Ordens militares conquistavam com outras praças Trujillo e Medellin, com apenas 1500 homens.

Simultaneamente seu filho, o Infante D. Afonso – mais tarde Afonso X, o Sábio –, vencia em Jerez de la Frontera o exército do rei mouro de Sevilha, composto de sete corpos de soldados.

O que foi considerado por todos como um feito verdadeiramente milagroso.

Num dia do ano de 1236 estava o rei-guerreiro com sua mãe à mesa para o almoço, em Benavente, cerca de León, quando chegou um cavaleiro a toda brida para avisá-lo de que alguns cristãos haviam conseguido apoderar-se do bairro de Ajarquia, nos arrabaldes de Córdoba, antiga capital do império muçulmano, na época com 300.000 habitantes.

Sitiados, pediam socorro ao monarca para enfrentar os inúmeros mouros que os cercavam.

Sem provar nenhum alimento, São Fernando levantou-se imediatamente e foi reunir seus guerreiros para socorrer os bravos súditos. Isso feito, eles cercaram a cidade de Córdoba.

São Fernando, urna com o corpo do santo, Sevilha
O soberano foi apertando cada vez mais o cerco, até que no dia 29 de junho, festa dos gloriosos Apóstolos São Pedro e São Paulo, o exército cristão entrou na antiga capital dos califas, havia 525 anos em poder dos infiéis.

A mesquita maior da cidade foi purificada pelo bispo de Osma e transformada em igreja dedicada a Nossa Senhora.

Um fato simbólico: tendo o mouro Almanzor dois séculos antes conquistado a Galícia, havia feito transportar os sinos do santuário de Santiago de Compostela até Córdoba em ombros de cristãos.

Pois bem, em reparação por esse ultraje, São Fernando mandou que os sinos fossem restituídos ao seu local de origem em ombros de mouros!

Triunfo da Cruz sobre o crescente

O cerco de Sevilha, em 1247, foi uma das mais notáveis empresas daqueles tempos. Durante 20 meses os mouros resistiram, pois o calor e as enfermidades pareciam lutar em seu favor.

Contudo, o rei-santo não desistiu. Tanto mais que não tinha pressa, tendo ele e seus guerreiros chamado suas mulheres e filhos para o cerco.

São Fernando havia trazido até mesmo os futuros povoadores para Sevilha, homens de todas as regiões e de todos os ofícios.

Finalmente Sevilha capitulou. Cantando hinos religiosos e portando um andor com a imagem da Virgem vitoriosa, um estupendo cortejo de cem mil homens entrou na cidade conquistada.

Foi um brilhante triunfo da Santa Cruz sobre o Islã. De todo o antigo império mouro restava apenas o reino de Granada.

São Luís, rei de França, congratulou-se com seu primo pelo sucesso e enviou-lhe um fragmento da coroa de espinhos e outras preciosíssimas relíquias que São Fernando mandou colocar na catedral de Sevilha — outra grande ex-mesquita purificada e consagrada ao culto cristão.

Havendo, com exceção do reino de Granada, expulsado os mouros de quase toda a Espanha, São Fernando preparava-se para ir plantar a fé na África quando foi acometido por mortal doença, apesar de ter somente 52 anos de idade.

Depois de receber todos os sacramentos da Igreja, faleceu piedosamente no dia 30 de maio de 1252, indo receber no Céu a recompensa demasiadamente grande que Deus reserva para os seus eleitos.

Assim um autor o descreve: “Elevada estatura, agilidade de movimentos, distinção e majestade nos modos, doce e forte ao mesmo tempo, amável com firmeza, reúne em maravilhosa harmonia as qualidades do guerreiro e as de homem de Estado”.5

(Fonte: Plinio Maria Solimeo, “Catolicismo” nº 725, maio de 2011)


Notas:
1. Cfr. Edelvives, El Santo de Cada Día, Editorial Luis Vives, S.A., Zaragoza, 1947, tomo III, p. 302.
2. Fr. Justo Pérez de Urbel, O.S.B., Año Cristiano, Ediciones Fax, Madrid, 1945, tomo II, p. 481.
3. Edelvives, op. cit. p. 304; Urbel, p. 482.
4. Urbel, id. ib. p. 484.
5. Urbel, op. cit., p. 487.
Outras obras consultadas:
- João Batista Weiss, Historia Universal, Tipografia La Educación, Barcelona, 1929, tomo VI, pp. 595 e ss.
- Carlos R. Eguía, Fernando III de Castilla y León, El Santo, in Gran Enciclopedia Rialp, Ediciones Rialp, Madri, 1972, tomo X, 41 e ss.






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terça-feira, 31 de outubro de 2023

O invicto São Fernando III, Rei de Leão e Castela ‒ 1

São Fernando III, catedral de Sevilha
Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
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No início do século XIII, os muçulmanos da Espanha uniram-se aos da África numa grande coligação visando restaurar o império islamita até aos Pirineus.

Inocêncio III (1160-1216), um dos grandes Papas da Idade Média, promoveu então uma cruzada dos reis cristãos de Castela, Navarra e Aragão para enfrentar a moirama.

O embate se deu no dia 16 de julho de 1212, na memorável batalha de Navas de Tolosa, quando o exército cristão desbaratou o da Meia Lua, salvando assim toda a Europa do iminente perigo muçulmano e estendendo significativamente os limites da Cristandade de então.

Ao término da batalha, o Arcebispo de Toledo, D. Rodrigo Jimenez de Rada, dividiu o botim: os reis de Aragão e Navarra ficaram com todas as riquezas dos vencidos.

E voltando-se para D. Afonso VIII, de Castela, disse-lhe o Arcebispo: “Quanto a vós, ficais com a glória e a honra do triunfo”.

Parte dessa herança e dessa glória foram sem dúvida suas filhas, as princesas dona Berengüela e dona Branca, que de futuro seriam mães respectivamente de São Fernando III e de São Luís Rei da França.

A D. Afonso VIII coube assim a glória de ser avô daqueles que talvez tenham sido os maiores reis da Idade Média.1

“Quem ama, odeia; quem odeia combate”

Conta-se que certo dia de agosto de 1199, ao se dirigirem o rei Afonso IX de Leão e a rainha dona Berengüela de Salamanca para Zamora, esta deu à luz no acampamento real àquele que seria um dos maiores guerreiros do seu tempo: São Fernando III de Leão e Castela.

O menino cresceu na corte leonesa sob os cuidados de sua piedosa mãe até a anulação por decisão papal do casamento de seus pais, porquanto o mesmo havia sido efetuado dentro dos graus de parentesco proibidos então. Dona Berengüela voltou para Castela e o menino ficou aos cuidados do pai.

Quando contava aproximadamente dez anos, Fernando foi acometido por doença mortal, não podendo dormir nem comer. Tomando-o, dona Berengüela cavalgou com ele até o mosteiro de Oña, onde passou a noite rezando e chorando aos pés da Virgem milagrosa.

Então, diz um cronista da época, “o menino começou a dormir, e depois que acordou, logo pediu para comer”.

Sao Fernando de Castela, Índice de los Privilegios reales,
catedral de Santiago de Compostela
Segundo um hagiógrafo do santo, a partir daí tudo mudou: “Desde esse momento, a fortuna tornou-se inseparável companheira do amável príncipe: ela o porá em possessão de dois tronos, abrir-lhe-á os corações dos homens e, sem atraiçoá-lo jamais, o porá em posse da vitória”.2

De uma piedade combativa, o jovem príncipe chorava de indignação quando ouvia dizer que os mouros blasfemavam contra Cristo e ultrajavam a Espanha cristã.

E – como diz um antigo adágio da aguerrida Espanha, “Quem ama, odeia; quem odeia combate” – seu ódio contra o inimigo da fé crescia em decorrência de seu amor a Deus. Tornar-se-á mais tarde campeão de Jesus Cristo, procurando reconquistar toda a Espanha para a sua Igreja.

São Fernando, Rei de Leão e Castela


Dona Berengüela vivia na corte de seu irmão, o rei menino Henrique I, então com 14 anos. Brincando este um dia no palácio episcopal de Palência, uma telha caiu-lhe mortalmente sobre a cabeça.

Sem herdeiros, seu trono passou para ela. Demonstrando gênio político superior e desinteresse de mãe, depois de proclamada rainha de Castela pelas cortes de Valladolid, dona Berengüela renunciou ao trono em favor do filho, a quem tinha chamado sigilosamente de Leão. Fernando tinha então 18 anos e era também herdeiro do trono de Leão.

Quem não gostou foi o pai de Fernando, Afonso IX, que desejava o trono para si. Sem levar em consideração que lutava contra o próprio filho, invadiu Castela à frente do exército leonês.

Não querendo lutar contra o pai, São Fernando enviou-lhe uma carta na qual dizia: “Por que hostilizais com tanta irritação este reino? Não tendes que temer danos nem guerras de Castela enquanto eu viver”.3

Afonso IX renunciou ao desejo de se tornar rei de Castela, mas deserdou o filho ao morrer.

São Fernando III não só consolidou a hegemonia de Castela como ainda aumentou seu prestígio ampliando-lhe as fronteiras, pacificando-a, repovoando-a e mantendo a paz com seus vizinhos.

Com a morte do pai e a renúncia das herdeiras do trono – suas meias-irmãs dona Sancha e dona Dulce, filhas de Afonso IX com a sua primeira mulher Teresa de Portugal – acedeu à coroa de Leão. Dona Teresa também tivera que separar-se do marido por razões de parentesco.

Aos 22 anos de idade, Fernando III casou-se com Beatriz da Suábia, considerada a princesa mais piedosa do seu tempo.

Desse matrimônio nasceram dez filhos, sete homens e três mulheres. Enviuvando em 1235, voltou a casar-se, desta vez com Joana de Ponthieu, bisneta de Luís VII da França. Desta união nasceram mais três filhos.








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terça-feira, 17 de outubro de 2023

Assim morreu Bayard, "o cavaleiro sem medo e sem mancha"

Bayard, estátua em St. Anne d'Auray, Bretanha, França

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
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Pierre Terrail, senhor de Bayard (1476 – 30 de Abril 1524) foi um cavaleiro francês que nacido no fim da Idade Média levou o espírito medieval até a era seguinte, i. é, a decadente Renascença. Ele ficou geralmente conhecido como o Cavaleiro de Bayard. Desde sua morte é lembrado como "o cavaleiro sem medo e sem mancha", (le chevalier sans peur et sans reproche). Ele porém, preferia ser tratado apenas como "le bon chevalier", i. é, "o bom cavaleiro".
Faleceu na passagem alpina de Sesia protegendo a retaguarda do exército real francês, acossada por tropas espanholas comandadas pelo marqués de Pescara.


Os atiradores eram excelentes. Dois tiros simultâneos: um prostrou por terra mortalmente Jean de Chabannes, senhor de Valdenesse; o outro atingiu Bayard e lhe quebrou a espinha dorsal.

“Senhor Jesus!” — bradou, agarrando-se no arção de sua cela para não cair. Aqueles que o rodeavam ouviram-no ainda exclamar: “Senhor Deus, vou morrer!”

Correram para auxiliá-lo, mas todo socorro humano era impotente.

Sentindo que suas forças o abandonavam, Bayard tirou sua espada, que havia tanto tempo o acompanhava em todas as pelejas, e que tão bem lutara pela França.

Ergueu-a, contemplou-a, depois osculou a cruz que havia no punho, como se quisesse associar, neste gesto, a devoção pelo Redentor e o amor pela arma do cavaleiro.

“Miserere mei, Deus, secundum magnam misericordiam tuam” — escapa de seus lábios contritos.

Repentinamente calou-se. Estava mortalmente pálido e oscilava na sela. Jean Joffrey, seu escudeiro, que havia muito tempo o servia fielmente e o escoltava em todas as suas proezas, ajudou seu senhor a descer do cavalo.

À sombra do carvalho

Bayard reabriu os olhos. Com um gesto mostrou um carvalho que havia por perto, e fez sinal de que queria repousar à sombra da árvore venerável.

“Desejo esperar a morte vendo de frente meus inimigos — murmurou —. Eu nunca lhes voltei as costas. Pela honra de cavaleiro católico, não é agora que o farei”.

Um nobre aliado seu aproximou-se, suplicando a Bayard que se deitasse na maca que os soldados haviam feito com suas lanças; mas ele recusou.

Bayard se aproximava de sua última proeza: o encontro face a face com Deus. Por entre seus últimos esforços, ouviram-se dele estes gemidos: “Em cada movimento sinto as dores da morte que me vem buscar”.

Seu escudeiro chorava, ajoelhado junto a seu senhor. Bayard, apesar de seu estado, demonstrando um afeto especial, afagou-lhe a cabeça:

“Jacques, amigo, enxuga essas lágrimas. É vontade de Deus que eu deixe este mundo. Por Sua graça eu nele fiquei muito tempo, e recebi bens e honras imerecidos.

“A única coisa que lamento é não ter cumprido meu dever tão bem quanto deveria.

“Se tivesse mais tempo, corrigiria as faltas passadas; mas se Ele me quer chamar agora, suplico que Ele tenha piedade de mim, pela sua imensa misericórdia.

“Confio que, pela intercessão de sua Mãe Santíssima, ele olhará para sua misericórdia, e não para meus pecados, que pediriam Sua Justiça punitiva”.

Os inimigos assomam ao longe, dirigindo-se em carga de cavalaria a Bayard e seus companheiros. Querendo poupar sacrifícios a seus pares e súditos, Bayard logo pediu que o deixassem, mas eles com galhardia não acederam.

Então o nobre cavaleiro pediu a seu escudeiro que o ouvisse em confissão, pois ali não havia sacerdote que pudesse escutar suas faltas e lhe dar a absolvição. Ao preboste de Paris, Sr. d’Alègre, ele confiou seus últimos desejos.

Despedida dos seus


Bayard, estátua em Grenoble, detalheDepois disso ele suavemente afastou de si os que o rodeavam:

“Senhores, eu vos suplico, ide-vos. Do contrário, caireis nas mãos dos inimigos, e isto não me será de nenhum proveito, porque me sentirei culpado.

“Adeus, meus bons senhores e amigos. Recomendo às vossas orações minha alma pecadora. Eu vos suplico, senhor d’Alègre, que saudeis por mim o rei, nosso senhor.

“Dizei-lhe quanto lamento não ter podido servi-lo por mais tempo e como eu muito gostaria. Saudai também os senhores príncipes, todos os meus companheiros e todos os gentis-homens da doce França, quando os virdes”.

Eles insistiram em ficar, segurando mesmo suas vestes, mas ele os repeliu com uma afetuosa insistência; e como quisessem resistir, fez um gesto: “Eu ordeno!”

Docilmente eles se despediram. Entre lágrimas, beijaram-lhes as mãos, enquanto crescia o grupo de cavaleiros inimigos. Via-se o brilho dos capacetes e o movimento dos estandartes.

Joffrey era o único junto dele. Bayard, exausto, fechara os olhos. O vento agitava os ramos do carvalho.

O inimigo espanhol


Quando Bayard, com dificuldade, reabriu os olhos, um cavaleiro coberto de esplêndida armadura, refulgente de sedas e penachos, estava diante dele.

Bayard sorriu. Era um adversário digno dele, um bravo guerreiro: o marquês de Pescara. O general espanhol estava admirado de ver um homem reclinado num tronco, junto ao qual chorava o escudeiro.

Quando reconheceu o “cavaleiro sem medo e sem mácula”, o marquês desmontou rapidamente e se aproximou, cheio de respeito e compaixão.

“Prouvesse a Deus, senhor de Bayard, que eu vos fizesse prisioneiro, mesmo que para isso derramasse a quarta parte do meu sangue.

“Nesse embate que teríamos, conheceríeis o grande apreço que tenho por vossas qualidades. Desde que empunhei armas, não ouvi falar de cavaleiro que, em virtudes, se aproximasse de vós!”

Assim falava ele por causa da grande fama que Bayard tinha adquirido, pela sua vida de valor e devotamento, o que obrigava seus próprios inimigos a admirá-lo, respeitá-lo e temê-lo.

Bayard assiste o rei Francisco I na vitória de Marignano“Eu deveria estar bem aliviado de vos ver assim — disse ainda o marquês — sabendo bem que nas guerras o Imperador, meu senhor, não tem maior nem mais feroz inimigo. Entretanto, quando considero a enorme perda que hoje sofre a Cavalaria, Deus é testemunha de que eu preferiria dar a metade do que possuo, para que tal não acontecesse. Mas como para a morte não há remédio, peço Àquele que nos criou à Sua Imagem que se digne levar vossa alma para junto d’Ele”.

Em seguida insistiu para que o deixasse levá-lo a seu castelo, assegurando-lhe que seus cirurgiões o curariam. Jamais um cavalheiro usou convites tão amáveis e insistentes para atrair a seu castelo um nobre hóspede.

Bayard sabia que Pescara era sincero, e que seria tratado como cavaleiro por esse inimigo honrado. Pressentindo que a morte lhe era certa, Bayard, apesar de seus ferimentos, declinou honrosamente o convite: “Prefiro a simplicidade do campo de batalha, pois desejo morrer como o guerreiro que sempre fui”.

Pescara acedeu. Para atender aos desejos do Cavaleiro, ele fez armar sua própria tenda ao redor da árvore, arrumou um leito e nele colocou, com suas próprias mãos, o inimigo ferido. Então, ali já não estavam dois guerreiros inimigos servindo causas opostas, mas dois cavaleiros, fraternalmente unidos pelo espírito da Cavalaria, animados do mesmo ideal, que as circunstâncias tinham colocado em campos opostos, embora nutrissem mutuamente uma admiração varonil.

Bayard não quis receber os médicos que se apresentaram para tratá-lo. Acolheu devotamente o capelão do marquês, ao qual renovou sua confissão feita minutos antes a Joffrey, seu escudeiro. Depois pediu que o deixassem sozinho.

Bayard, vitral na capela da Universidade de PrincetonEnquanto ele se recolhia, Pescara organizou seu exército em ordem de desfile. As ordens de comando ressoavam de uma extremidade a outra do esquadrão; ouvia-se o galope dos cavalos, o rufar dos tambores, o soar das trombetas. Todos esses sons familiares flutuavam ao redor do agonizante.

Irrompeu o som marcial de uma grande fanfarra, acompanhando o passo cadenciado dos cavalos e a marcha pesada dos inimigos de Bayard.

O exército espanhol desfilava ante o Cavaleiro moribundo, inclinando seus estandartes no momento em que passavam pelo carvalho. Assim era o último adeus de Pescara, a última homenagem de um bravo prestada a outro bravo.

“A França tem uma perda irreparável neste nobre Cavaleiro, dizia François d’Avalos, antes de se despedir dele”.

A noite caía. O rumor do exército em marcha se extinguia ao longe. Novamente a calma do crepúsculo e o silêncio rodeavam o carvalho. Bayard rezava.

Último encontro


Uma voz familiar o arrancou de sua meditação: “Ah! Senhor de Bayard, que sempre estimei por vossa bravura e lealdade, muito lamento ver-vos neste estado!”

O rosto de Bayard tornou-se grave e hostil. Por que ser perturbado por tal homem, em tal momento? O condestável de Bourbon estava à sua frente, e em seu olhar havia uma sincera compaixão e também uma admiração sincera; talvez remorso.

O momento não era para explicações. Bayard não queria saber as razões que haviam levado esse homem a combater num exército estrangeiro e contra seu rei. Sem dúvida, Bourbon viera para se justificar, para explicar, mas Bayard não queria ouvi-lo, não queria conhecer as explicações de um homem que havia cometido uma felonia em relação ao seu rei.

Bourbon esperava uma palavra: um julgamento ou um perdão. Queria partir absolvido por este homem de honra, mas Bayard desdenhou discutir.

“Senhor, eu vos agradeço. Não tenhais piedade de mim, que morro como homem de bem, servindo meu rei. Mas ai de vós, que empunhais armas contra vosso príncipe, vossa pátria e vossa Fé”.

“Dito isto, calou-se. Já estava acima de vãs querelas humanas, de ambição e de interesse; de guerras absurdas, de intrigas mesquinhas, de matanças inúteis. Bayard pertencia agora a Deus, e para Ele dirigia seus últimos pensamentos. À medida que se afastava da terra, ele se aproximava da pura luz da suprema Verdade, das certezas definitivas. Rezava.

“Meu Deus, Vós que dissestes, eu o sei, que aquele que se voltasse para Vós, embora pecador, estaríeis sempre pronto a recebê-lo e perdoá-lo. Ah!, meu Deus, Criador e Redentor, eu vos ofendi gravemente durante minha vida. Peço-vos perdão, com o coração contrito.

“Reconheço que, se me retirasse por mil anos no deserto, vivendo a pão e água, isso ainda não seria bastante para entrar em vosso reino, se, por vossa grande e infinita bondade não vos dignásseis ali me receber, porque ninguém pode merecer neste mundo tão alta recompensa.

“Meu Pai e Salvador, eu vos suplico que não considereis as faltas que cometi. Julgai-me segundo vossa grande misericórdia, e não segundo os rigores de vossa justiça”.
O sol desaparecera. A noite caíra. A oração de Bayard interrompeu-se. O Cavaleiro estava na presença de Deus...

(Fonte: Marcel Brion, "Historia", nº 329, abril de 1974)



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