quarta-feira, 28 de julho de 2010

A morte de Gonçalo Mendes da Maia, «O Lidador» ‒ IV

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs







CAPÍTULO IV

Entretanto os mouros iam de vencida: Mem Moniz, D. Ligel, Godinho Fafes, Gomes Mendes Gedeão e os outros cavaleiros daquela lustrosa companhia tinham praticado maravilhosas façanhas.

Mas, entre todos, tornava-se notável o Espadeiro. Com um pesado montante nas mãos, coberto de pó, suor e sangue, pelejava a pé; que o seu agigantado ginete caíra morto de muitos tiros de frechas lançadas.

De roda dele não se viam senão cadáveres e membros destroncados, por cima dos quais trepavam, para logo recuarem ou baquearem no chão, os mais ousados cavaleiros árabes. Como um promontório de escarpados alcantis, Lourenço Viegas estava imóvel e sobranceiro no meio do embate daquelas vagas de pelejadores que vinham desfazer-se contra o terrível montante do filho de Egas Moniz.

Quando o fronteiro caiu, o grosso dos mouros fugia já para além do pinhal; mas os mais valentes pelejavam ainda à roda do seu moribundo. O Lidador esse tinha sido posto em cima de umas andas, feitas de troncos e franças de árvores, e quatro escudeiros, que restavam vivos dos dez que consigo trouxera, o haviam transportado para a saga da cavalgada.

O tinir dos golpes era já muito frouxo e sumiam-se no som dos gemidos, pragas e lamentos que soltavam os feridos derramados pela veiga ensangüentada. Se os mouros, porém, levavam, fugindo, vergonha e dano, a vitória não saíra barata aos portugueses.

Viam perigosamente ferido o seu velho capitão, e tinham perdido alguns cavaleiros de conta e a maior parte dos homens de armas, escudeiros e pajens.

Foi neste ponto que, ao longe, se viu erguer uma nuvem de pó, que voava rápida para o lugar da peleja. Mais perto, aquele turbilhão rareou vomitando do seio basto esquadrão de árabes. Os mouros que fugiam deram volta e gritaram:

‒ A Ali-Abu-Hassan! Só Deus é Deus, e Maomé o seu profeta!

Era, com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de Tânger, que estava com seu exército sobre Mertola e que viera com mil cavaleiros em socorro de Almoleimar.



CAPÍTULO V

Cansados de largo combater, reduzidos a menos de metade em número e cobertos de feridas, os cavaleiros de Cristo invocaram o seu nome e fizeram o sinal da cruz. O Lidador perguntou com voz fraca a um pajem, que estava ao pé das andas, que nova revolta era aquela.

— Os mouros foram socorridos por um grosso esquadrão — respondeu tristemente o pajem. — A Virgem Maria nos acuda, que os senhores cavaleiros parece recuarem já.

O Lidador cerrou os dentes com força e levou a mão à cinta. Buscava a sua boa toledana.

— Pajem, quero um cavalo. Onde está a minha espada?

— Aqui a tenho, senhor. Mas estais tão quebrado de forças!... — Silêncio! A espada, e um bom ginete.

O pajem deu-lhe a espada e foi pelo campo buscar um ginete, dos muitos que andavam já sem dono. Quando voltou com ele, o Lidador, pálido e coberto de sangue, estava em pé e dizia, falando consigo:

— Por Santiago que não morrerei como vilão da beetria onde entrou cavalgada de mouros!

E o pajem ajudou-o a montar o cavalo.

Ei-lo o velho fronteiro de Beja! Semelhava um espectro erguido de pouco em campo de finados: debaixo de muitos panos que lhe envolviam o braço e o ombro esquerdo levava a própria morte; nos fios da espada, que a mão direita mal sustinha, levava, porventura, ainda a morte de muitos outros!


CAPÍTULO VI

Para onde mais travada e acesa andava a peleja se encaminhou o Lidador.

Os cristãos afrouxavam diante daquela multidão de infiéis, entre os quais mal se enxergavam as cruzes vermelhas pintadas nas cimeiras dos portugueses.

Dois cavaleiros, porém, com vulto feroz, os olhos turvados de cólera, e as armaduras crivadas de golpes, sustinham todo o peso da batalha.

Eram estes o Espadeiro e Mem Moniz. Quando o fronteiro assim os viu oferecidos a certa morte algumas lágrimas lhe caíram pelas faces e, esporeando o ginete, com a espada erguida, abriu caminho por entre infiéis e cristãos e chegou aonde os dois, cada um com seu montante nas mãos, faziam larga praça no meio dos inimigos.

— Bem-vindo, Gonçalo Mendes! — disse Mem Moniz. — Quiseste assistir conosco a esta festa de morte? Vergonha era, de feio, que estivesses fazendo teu passamento, com todo o repouso, deitado lá na saga, enquanto eu, velha dona, espreito os mouros com meu sobrinho junto desta lareira...

— Implacáveis sois vós outros, cavaleiros de Riba-Douro, — respondeu o Lidador em voz sumida- que não perdoais uma palavra sem malícia. Lembra-te, Mem Moniz, de que bem depressa estaremos todos diante do justo juiz.

‒ Velho sois; bem o mostrais! — acudiu o Espadeiro. — Não cureis de vãs porfias, mas de morrer como valentes. Demos nestes perros, que não ousam chegar-se a nós. Avante, e Santiago!

— Avante, e Santiago! — responderam Gonçalo Mendes e Mam Moniz: e os três cavaleiros deram rijamente nos mouros.


(Fonte: Universidade de Amazonia . NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal, CEP: 66060-902, Belém – Pará, www.nead.unama.br, e-mail: nead@unama.br)



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quarta-feira, 21 de julho de 2010

A morte de Gonçalo Mendes da Maia, «O Lidador» ‒ III


Luis Dufaur
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CAPITULO III

Como longa fita de muitas cores, recamada de fios d'ouro e refletindo mil acidentes de luz, a extensa e profunda linha dos cavaleiros mouros sobressaía na veiga entre as searas pálidas que cobriam o campo.

Defronte deles, os trinta cavaleiros portugueses, com trezentos homens d'armas, pajens e escudeiros, cobertos dos seus escuros envoltórios e lanças em riste, esperavam o brado de acometer.

Quem visse aquele punhado de cristãos, diante da cópia d'infiéis que os esperavam, diria que, não com brios de cavaleiros, mas com fervor de mártires, se ofereciam a desesperado transe. Porém, não pensava assim Almoleimar, nem os seus soldados, que bem conheciam a têmpera das espadas e lanças portugueses e a rijeza dos braços que as meneavam.

De um contra dez devia ser o iminente combate; mas, se havia aí algum coração que batesse descompassado, algumas faces descoradas, não era entre os companheiros do Lidador, que tal coração batia ou que tais faces descoravam.

Pouco a pouco, a planura que separava as duas hostes tinha-se embrido debaixo dos pés dos cavalos, como no tórculo se embebe a folha de papel saindo para o outro lado convertida em estampa primorosa. As lanças iam feitas: o Lidador bradara Santiago, e o nome de Alá soara em um só grito por toda a fileira mourisca.

Encontraram-se! Duas muralhas fronteiras, balouçadas por violento terremoto, desabando, não fariam mais ruído, ao bater em pedaços uma contra a outra, do que este recontro de infiéis e cristãos. As lanças, topando em cheio nos escudos, tiravam deles um som profundo, que se misturava com o estalar das que voavam despedaçadas. Do primeiro encontro, muitos cavaleiros vieram ao chão: um mouro robusto foi derribado por Mem Moniz, que lhe falsou as armas e traspassou o peito com o ferro de sua grossa lança. Deixando-a depois cair, o velho desembainhou a espada e gritou ao Lidador, que perto dele estava:

— Senhor Gonçalo Mendes, ali tendes, no peito daquele perro, aberto a seteira por onde eu, velha dona assentada à lareira, costumo vigiar a chegada de inimigos, para lhes ladrar, como alcatéia de vilãos, do cimo da torre de menagem.

O Lidador não lhe pôde responder. Quando Mem Moniz proferia as últimas palavras, ele topara em cheio com o terrível Almoleimar. As lanças dos dois contendores haviam-se feito pedaços, e o alfanje do mouro cruzou-lhe com a toledana do fronteiro de Beja.

Como duas torres de sete séculos, cujo cimento o tempo petrificou, os dois capitães inimigos estavam um defronte do outro, firmes em seus possantes cavalos: as faces pálidas e enrugadas do Lidador tinham ganhado a imobilidade que dá, nos grandes perigos, o hábito de os afrontar: mas no rosto de Almoleimar divisavam-se todos os sinais de um valor colérico e impetuoso. Cerrando os dentes com força, descarregou um golpe tremendo sobre o seu adversário: o Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfanje se embebeu inteiro, e procurou ferir Almoleimar entre o fraldão e a couraça; mas a pancada falhou, e a espada desceu, faiscando, pelo coxote do mouro, que já desencravara o alfanje. Tal foi a primeira saudação dos dois cavaleiros inimigos.

— Brando é o teu escudo, velho infiel; mais bem temperado é o metal do meu arnês. Veremos agora se na tua touca de ferro se embotam os fios deste alfanje.

Isto disse Almoleimar, dando uma risada, e a cimitarra bateu no fundo do vale penedo desconforme desprendido do píncaro da montanha.

O fronteiro vacilou, deu um gemido, e os braços ficaram-lhe pendentes: a espada ter-lhe-ia caído no chão, se não estivesse presa ao punho do cavaleiro por uma cadeia de ferro. O ginete, sentindo as rédeas frouxas, fugiu um bom pedaço pela campanha, a todo o galope.

Mas o Lidador tornou a si: uma forte sofreada avisou o ginete de que seu senhor não morrera. À rédea solta, lá volta o fronteiro de Beja; escorre-lhe o sangue, envolto em escuma, pelos cantos da boca: traz os olhos torvos de ira: ai de Almoleimar!

Semelhante ao vento de Deus, Gonçalo Mendes da Maia passou por entre os cristãos e mouros: os dois contendores viram-se, e, como o leão e o tigre, correram um para o outro. As espadas reluziam no ar; mas o golpe do Lidador era simulado, e o ferro mudando de movimento no ar, foi bater de ponta no gorjal de Almoleimar, que cedeu à violenta estocada; e o dangue, saindo às golfadas, cortou a última maldição do agareno.

Mas a espada deste também não errara o golpe: vibrada na ânsia, colhera pelo ombro esquerdo o velho fronteiro e, rompendo a grossa malha do lorigão, penetrara na carne até o osso. Ainda mais uma vez a mesma terra bebeu nobre sangue godo misturado com sangue árabe.

— Perro maldito! Sabe lá no inferno que a espada de Gonçalo Mendes é mais rija que a sua cervilheira.

E, dizendo isto, o Lidador caiu amortecido; um dos seus homens de armas voou a socorrê-lo; mas o último golpe d'Almoleimar fôra o brado da sepultura para o fronteiro de Beja: os ossos do ombro do bom velho estavam como triturados, e as carnes rasgadas pendiam-lhe para um e para outro lado envoltas nas malhas descosidas do lorigão.




(Fonte: Universidade de Amazonia . NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal, CEP: 66060-902, Belém – Pará, www.nead.unama.br, e-mail: nead@unama.br)



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quarta-feira, 14 de julho de 2010

A morte de Gonçalo Mendes da Maia, o «Lidador» ‒ II

Luis Dufaur
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continuação do post anterior

 
CAPÍTULO II

Era um dia do mês de julho, duas horas depois da alvorada, e tudo estava em grande silêncio dentro da cerca de Beja: batia o sol nas pedras esbranquiçadas dos muros e torres que a defendiam: ao longe, pelas imensas compinas que avizinhavam o teso sobre que a povoação está assentada, viam-se ondear as searas maduras, cultivadas por mãos de agarenos para seus novos senhores cristãos.

Regados por lágrimas de escravos tinham sido esses campos, quando formoso dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por lágrimas de servos seriam outra vez umedecidos, quando, no mês de julho, a paveia, cercada pela fouce, pendesse sobre a mão do ceifeiro: choro de amargura havia aí, como, cinco séculos antes, o houvera: então de cristãos conquistados, hoje de mouros vencidos.

A cruz ateava-se outra vez sobre o crescente quebrado: os coruchéus das mesquitas convertiam-se em campanários de sés, e a voz do almuadem trocava-se por toada de sinos, que chamavam à oração entendida por Deus.

Era esta a resposta dada pela raça goda aos filhos d'África e do Oriente, que diziam, mostrando os alfanges: — “é nossa a terra de Espanha”. — O dito árabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito séculos a escrever-se.

Pelaio entalhou com a espada a primeira palavra dela nos cerros das Astúrias; a última gravaram-na Fernando e Isabel, com os pelouros de suas bambardes, nos panos das muralhas da formosa Granada: e esta escritura, estampada em alcantis de montanhas, em campos de batalha, nos portais e torres dos templos, nos bancos dos muros das cidades e castelos, acrescentou no fim a mão da Providência — “assim para todo o sempre!”

Nesta luta de vinte gerações andavam lidando as gentes do Alentejo. O servo mouro olhava todos os dias para o horizonte, onde se enxergavam as serranias do Algarve: de lá esperava ele salvação ou, ao menos, vingança; ao menos, um dia de combate e corpos de cristãos estirados na veiga para pasto dos açores bravios.

A vista do sangue enxugava-lhes por algumas horas as lágrimas, embora as aves de rapina tivessem, também, abundante ceva de cadáveres de seus irmãos! E este ameno dia de julho devia ser um desses dias por que suspirava o servo ismaelita.

Almoleimar descera com os seus cavaleiros às campinas de Beja. Pelas horas mortas da noite, viam-se as almenaras das suas talaias nos píncaros das serras remotas, semelhantes às luzinhas que em descampados e tremedais acendem as bruxas em noites de seus folguedos: bem longe estavam as almenaras, mas bem perto sentiam os escutas o resfolegar e o tropear de cavalos, e o ranger das folhas secas, e o tinir a espaços de alfanje batendo em ferro de caneleira ou de coxote.

Ao romper d'alva, os cavaleiros do Lidador saíam mais de dois tiros de besta além das muralhas de Beja; tudo porém estava em silêncio, e só, aqui e ali, as searas calcadas davam rebate de que por aqueles sítios tinham vagueados almogaures mouros, como o leão do deserto rodeia, pelo quarto de modorra, as habitações dos pastores além das encostas do Atlas.

No dia em que Gonçalo Mendes da Maia, o velho fronteiro de Beja, cumpria os noventa e cinco anos, ninguém saíra, pelo arrebol da manhã, a correr o campo; e, todavia, nunca tão de perto chegara Almoleimar; porque uma frecha fôra pregada a mão em um grosso sovereiro que sombreava uma fonte a pouco mais de tiro de funda dos muros do castelo.

Era que nesse dia deviam ir mais longe os cavaleiros cristãos: Lidador pedira aos pajens o seu lorigão de malha de ferro e a sua boa toledana.

Trinta fidalgos, flor da cavalaria, corriam à rédea solta pelas campinas de Beja; trinta, não mais, eram eles; mas orçavam por trezentos os homens d'armas, escudeiros e pajens que os acompanhavam.

Entre todos avultava em robustez e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam, como flocos de neve, sobre o peitoral da cota d'armas, e o terrível Lourenço Viegas, a quem, pelos espantosos golpes da sua espada, chamavam o Espadeiro.

Eram formoso espetáculo o esvoaçar dos balsões e signas, fora de suas fundas e soltos ao vento, o cintilar das cervilheiras, as cores variegadas das cotas, e as ondas de pó que se levantavam debaixo dos pés dos ginetes, como se levanta o bulcão de Deus, varrendo a face de campina ressequida, em tarde ardente de verão.

Ao largo, muito ao largo, dos muros de Beja cai a atrevida cavalgada em demanda dos mouros; e no horizonte não se vêem senão os topos pardo-azulados das serras do Algarve, que parece fugirem tanto quanto os cavaleiros caminham.

Nem um pendão mourisco, nem um albornoz branco alvejam ao longe sobre um cavalo murzelo. Os corredores cristãos volteiam na frente da linha dos cavaleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se nos matos e transpõem-nos em breve; entram pelos canaviais dos ribeiros; aparecem, somem-se, tornam a sair ao claro; mas, no meio de tal lidar, apenas se ouvem o trote compassado dos ginetes e o grito monótono da cigarra, pousada nos raminhos da giesteira.

A terra que pisam é já dos mouros; é já além da frontaria. Se olhos de cavaleiros portugueses soubessem olhar para trás, indo em som de guerra, os que para trás de si os volvessem a custo enxergariam Beja.

Bastos pinhais começavam já a cobrir mais crespo território, cujos outirinhos, aqui e ali, se alteavam suaves, como seio de virgem em viço de mocidade. Pelas faces tostadas dos cavaleiros cobertos de pó corria o suor em bagas, e os ginetes alagavam de escuma as redes de ferro acaireladas d'ouro que só defendiam.

A um sinal do Lidador, a cavalgada parou; era necessário repousar, que o sol ia no zênite e abrasava a terra; descavalgaram todos à sombra de um azinhal e, sem desenfrear os cavalos, deixaram-nos pascer alguma relva que crescia nas bordas de um arroio vizinho.

Tinha passado meia hora: por mandado do velho fronteiro de Beja um almogávar montou a cavalo e aproximou-se à rédea solta de uma selva extensa que corria à mão direita: pouco, porém, correu; uma frecha despedida dos bosques sibilou no ar: o almogávar gritou por Jesus: a frecha tinha-se embebido ao lado: o cavalo parou de repente, e ele, erguendo os braços ao ar, com as mãos abertas, caiu de bruços, tombando para o chão, e o ginete partiu desenfreado através das veigas e desapareceu na selva.

O almogávar dormia o último sono dos valentes em terra de inimigos, e os cavaleiros da frontaria de Beja viram o seu transe do repousar eterno.

— A cavalo! A cavalo! — bradou a uma voz toda a lustrosa companhia do Lidador; e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura de malha dos ginetes, soou uníssono, quando todos os cavaleiros cavalgaram de um pulo; e os ginetes rincharam de prazer, como aspirando os combates.

Grita medonha troou ao mesmo tempo, além do pinhal da direita. — “Alá! Almoleimar!” — era o que dizia a grita.

Enfileirados em extensa linha, os cavaleiros árabes saíram à rédea solta de trás da escura selva que os encobria: o seu número excedia em cinco vezes o dos soldados da cruz: as suas armaduras lisas e polidas contrastavam com a rudeza das dos cristãos, apenas defendidos por pesadas cervilheiras de ferro e por grossas cotas de malha do mesmo metal:

Mas as lanças destes eram mais robustas, e as suas espadas mais volumosas do que as cimitarras mouriscas. A rudeza e a força da raça gótico-romana ia, ainda mais uma vez, provar-se com a destreza e com a perícia árabes.


(Fonte: Universidade de Amazonia . NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal, CEP: 66060-902, Belém – Pará, www.nead.unama.br, e-mail: nead@unama.br)



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quarta-feira, 7 de julho de 2010

A morte de Gonçalo Mendes da Maia, o «Lidador» ‒ I


Luis Dufaur
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Gonçalo Mendes da Maia (Maia, 1079 — Alentejo, 1170]), também conhecido como “O Lidador”, foi assim chamado pela sua vontade férrea e suas inúmeras e épicas conquistas no campo de batalha contra os sarracenos.

Ele foi um cavaleiro português do tempo do rei Dom Afonso Henriques. A tradição relata importantes realizações suas nos acontecimentos que precederam a fundação de Portugal.

Ele possuía uma marca como “fronteiro” na cidade fronteiriça com os maometanos de Beja.

Segundo a tradição, no dia em que comemorava 95 anos (91 segundo outros), Gonçalo Mendes estava na frente da decisiva batalha de Ourique contra os muçulmanos, que estava a correr mal para o lado português.

De repente, ganhou renovado vigor e, juntando um grupo de combatentes, atacou o inimigo.

Este, ao ver um soldado envelhecido atacar com a força de um jovem, julgaram-se perante um ato mágico, o que lhes diminuiu o moral.

Assim, um dos maiores líderes muçulmanos decidiu enfrentar Gonçalo Mendes, na esperança de reconquistar o moral das suas tropas.

Apesar de gravemente ferido, Gonçalo Mendes conseguiu derrotar o seu adversário, com efeitos demolidores, pois o exército muçulmano, sem líder, desorganizou-se, pelo que as tropas portuguesas conseguiram ganhar a batalha. Finda esta, Gonçalo Mendes terá sucumbido aos ferimentos.

Gonçalo Mendes da Maia é considerado um herói das cidades de Maia ‒ terra natal da família dos Mendes da Maia ‒ e de Beja. 

O escritor português Alexandre Herculano recriou a morte do herói em páginas de uma grandeza épica incomparável.




A Morte do Lidador 

de Alexandre Herculano



CAPÍTULO I


— Pajens! Ou arreiem o meu ginete murzelo; e vós dai-me o meu lorigão de malha de ferro e a minha boa toledana.

Senhores cavaleiros, hoje contam-se noventa e cinco anos que recebi o batismo, oitenta que visto armas, setenta que sou cavaleiro, e quero celebrar tal dia fazendo entrada por terras da frontaria dos mouros.

Isto dizia na sala de armas do castelo de Beja Gonçalo Mendes da Maia, a quem, pelas muitas batalhas que pelejara e por seu valor indomável, chamavam Lidador.

Afonso Henriques, depois do infeliz sucesso de Badajoz, e feitas pazes com el-rei Leão, o nomeara fronteiro da cidade de Beja, de pouco tempo conquistada aos mouros.

Os quatro Viegas, filhos do bom velho Egas Moniz, estavam com ele, e outro muitos cavaleiros afamados, entre os quais D. Ligel de Flandres e Mem Moniz — que a festa de vossos anos, Senhor Gonçalo Mendes, será mais de mancebo cavaleiro que de capitão encanecido e prudente.

Castelo de Beja, torre de menagem
Deu-vos el-rei esta frontaria de Beja para bem a haverdes de guardar, e não sei se arriscado é sair hoje à campanha, que dizem os escutas, chegados ao romper d'alva, que o famoso Almoleimar correr por estes arredores com dez vezes mais lanças do que todas as que estão encostadas nos lanceiros desta sala de armas.

— Voto a Cristo — atalhou o Lidador — que não cria em que o senhor rei me houvesse posto nesta torre de Beja para estar assentado à lareira da chaminé, como velha dona, a espreitar de quando em quando por uma seteira se cavaleiros mouros vinham correr até a barbacã, para lhes cerrar as portas e ladrar-lhes do cimo da torre da menagem, como usam os vilãos. Quem achar que são duros de mais os arneses dos infiéis pode ficar-se aqui.

— Bem dito! Bem dito! — exclamarem, dando grandes risadas, os cavaleiros mancebos.

— Por minha boa espada! — gritou Men Moniz, atirando o guante ferrado às lájeas do pavimento — que mente pela gorja quem disser que eu ficarei aqui, havendo dentro de dez léguas em redor lide com mouros. Senhor Gonçalo Mendes, podeis montar em vosso ginete, e veremos qual das nossas lanças bate primeiro em adarga mourisca.

— A cavalo! A cavalo! — gritou outra vez a chusma, com grande alarido.

Dali a pouco, ouvia-se o retumbar dos sapatos de ferro de muitos cavaleiros descendo os degraus de mármore da torre de Beja e, passados alguns instantes, soava só o tropear dos cavalos, atravessando a ponte levadiça das fortificações exteriores que davam para a banda da campanha por onde costumava aparecer a mourisma.


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