quarta-feira, 14 de julho de 2010

A morte de Gonçalo Mendes da Maia, o «Lidador» ‒ II

Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de
política internacional,
sócio do IPCO,
webmaster de
diversos blogs






continuação do post anterior

 
CAPÍTULO II

Era um dia do mês de julho, duas horas depois da alvorada, e tudo estava em grande silêncio dentro da cerca de Beja: batia o sol nas pedras esbranquiçadas dos muros e torres que a defendiam: ao longe, pelas imensas compinas que avizinhavam o teso sobre que a povoação está assentada, viam-se ondear as searas maduras, cultivadas por mãos de agarenos para seus novos senhores cristãos.

Regados por lágrimas de escravos tinham sido esses campos, quando formoso dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por lágrimas de servos seriam outra vez umedecidos, quando, no mês de julho, a paveia, cercada pela fouce, pendesse sobre a mão do ceifeiro: choro de amargura havia aí, como, cinco séculos antes, o houvera: então de cristãos conquistados, hoje de mouros vencidos.

A cruz ateava-se outra vez sobre o crescente quebrado: os coruchéus das mesquitas convertiam-se em campanários de sés, e a voz do almuadem trocava-se por toada de sinos, que chamavam à oração entendida por Deus.

Era esta a resposta dada pela raça goda aos filhos d'África e do Oriente, que diziam, mostrando os alfanges: — “é nossa a terra de Espanha”. — O dito árabe foi desmentido; mas a resposta gastou oito séculos a escrever-se.

Pelaio entalhou com a espada a primeira palavra dela nos cerros das Astúrias; a última gravaram-na Fernando e Isabel, com os pelouros de suas bambardes, nos panos das muralhas da formosa Granada: e esta escritura, estampada em alcantis de montanhas, em campos de batalha, nos portais e torres dos templos, nos bancos dos muros das cidades e castelos, acrescentou no fim a mão da Providência — “assim para todo o sempre!”

Nesta luta de vinte gerações andavam lidando as gentes do Alentejo. O servo mouro olhava todos os dias para o horizonte, onde se enxergavam as serranias do Algarve: de lá esperava ele salvação ou, ao menos, vingança; ao menos, um dia de combate e corpos de cristãos estirados na veiga para pasto dos açores bravios.

A vista do sangue enxugava-lhes por algumas horas as lágrimas, embora as aves de rapina tivessem, também, abundante ceva de cadáveres de seus irmãos! E este ameno dia de julho devia ser um desses dias por que suspirava o servo ismaelita.

Almoleimar descera com os seus cavaleiros às campinas de Beja. Pelas horas mortas da noite, viam-se as almenaras das suas talaias nos píncaros das serras remotas, semelhantes às luzinhas que em descampados e tremedais acendem as bruxas em noites de seus folguedos: bem longe estavam as almenaras, mas bem perto sentiam os escutas o resfolegar e o tropear de cavalos, e o ranger das folhas secas, e o tinir a espaços de alfanje batendo em ferro de caneleira ou de coxote.

Ao romper d'alva, os cavaleiros do Lidador saíam mais de dois tiros de besta além das muralhas de Beja; tudo porém estava em silêncio, e só, aqui e ali, as searas calcadas davam rebate de que por aqueles sítios tinham vagueados almogaures mouros, como o leão do deserto rodeia, pelo quarto de modorra, as habitações dos pastores além das encostas do Atlas.

No dia em que Gonçalo Mendes da Maia, o velho fronteiro de Beja, cumpria os noventa e cinco anos, ninguém saíra, pelo arrebol da manhã, a correr o campo; e, todavia, nunca tão de perto chegara Almoleimar; porque uma frecha fôra pregada a mão em um grosso sovereiro que sombreava uma fonte a pouco mais de tiro de funda dos muros do castelo.

Era que nesse dia deviam ir mais longe os cavaleiros cristãos: Lidador pedira aos pajens o seu lorigão de malha de ferro e a sua boa toledana.

Trinta fidalgos, flor da cavalaria, corriam à rédea solta pelas campinas de Beja; trinta, não mais, eram eles; mas orçavam por trezentos os homens d'armas, escudeiros e pajens que os acompanhavam.

Entre todos avultava em robustez e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam, como flocos de neve, sobre o peitoral da cota d'armas, e o terrível Lourenço Viegas, a quem, pelos espantosos golpes da sua espada, chamavam o Espadeiro.

Eram formoso espetáculo o esvoaçar dos balsões e signas, fora de suas fundas e soltos ao vento, o cintilar das cervilheiras, as cores variegadas das cotas, e as ondas de pó que se levantavam debaixo dos pés dos ginetes, como se levanta o bulcão de Deus, varrendo a face de campina ressequida, em tarde ardente de verão.

Ao largo, muito ao largo, dos muros de Beja cai a atrevida cavalgada em demanda dos mouros; e no horizonte não se vêem senão os topos pardo-azulados das serras do Algarve, que parece fugirem tanto quanto os cavaleiros caminham.

Nem um pendão mourisco, nem um albornoz branco alvejam ao longe sobre um cavalo murzelo. Os corredores cristãos volteiam na frente da linha dos cavaleiros, correm, cruzam para um e outro lado, embrenham-se nos matos e transpõem-nos em breve; entram pelos canaviais dos ribeiros; aparecem, somem-se, tornam a sair ao claro; mas, no meio de tal lidar, apenas se ouvem o trote compassado dos ginetes e o grito monótono da cigarra, pousada nos raminhos da giesteira.

A terra que pisam é já dos mouros; é já além da frontaria. Se olhos de cavaleiros portugueses soubessem olhar para trás, indo em som de guerra, os que para trás de si os volvessem a custo enxergariam Beja.

Bastos pinhais começavam já a cobrir mais crespo território, cujos outirinhos, aqui e ali, se alteavam suaves, como seio de virgem em viço de mocidade. Pelas faces tostadas dos cavaleiros cobertos de pó corria o suor em bagas, e os ginetes alagavam de escuma as redes de ferro acaireladas d'ouro que só defendiam.

A um sinal do Lidador, a cavalgada parou; era necessário repousar, que o sol ia no zênite e abrasava a terra; descavalgaram todos à sombra de um azinhal e, sem desenfrear os cavalos, deixaram-nos pascer alguma relva que crescia nas bordas de um arroio vizinho.

Tinha passado meia hora: por mandado do velho fronteiro de Beja um almogávar montou a cavalo e aproximou-se à rédea solta de uma selva extensa que corria à mão direita: pouco, porém, correu; uma frecha despedida dos bosques sibilou no ar: o almogávar gritou por Jesus: a frecha tinha-se embebido ao lado: o cavalo parou de repente, e ele, erguendo os braços ao ar, com as mãos abertas, caiu de bruços, tombando para o chão, e o ginete partiu desenfreado através das veigas e desapareceu na selva.

O almogávar dormia o último sono dos valentes em terra de inimigos, e os cavaleiros da frontaria de Beja viram o seu transe do repousar eterno.

— A cavalo! A cavalo! — bradou a uma voz toda a lustrosa companhia do Lidador; e o tinido dos guantes ferrados, batendo na cobertura de malha dos ginetes, soou uníssono, quando todos os cavaleiros cavalgaram de um pulo; e os ginetes rincharam de prazer, como aspirando os combates.

Grita medonha troou ao mesmo tempo, além do pinhal da direita. — “Alá! Almoleimar!” — era o que dizia a grita.

Enfileirados em extensa linha, os cavaleiros árabes saíram à rédea solta de trás da escura selva que os encobria: o seu número excedia em cinco vezes o dos soldados da cruz: as suas armaduras lisas e polidas contrastavam com a rudeza das dos cristãos, apenas defendidos por pesadas cervilheiras de ferro e por grossas cotas de malha do mesmo metal:

Mas as lanças destes eram mais robustas, e as suas espadas mais volumosas do que as cimitarras mouriscas. A rudeza e a força da raça gótico-romana ia, ainda mais uma vez, provar-se com a destreza e com a perícia árabes.


(Fonte: Universidade de Amazonia . NEAD - NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal, CEP: 66060-902, Belém – Pará, www.nead.unama.br, e-mail: nead@unama.br)



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