Luis Dufaur
Escritor, jornalista,
conferencista de política internacional, sócio do IPCO, webmaster de diversos blogs |
O poema “La Chanson de Guillaume” gira em torno de uma batalha desenvolvida por Guilherme do Nariz Curvo contra os sarracenos de Deramé, na planície de Larchamp.
Vivien atira-se à luta acompanhado de seu primo Girart. A batalha é calorosa e os franceses são dizimados.
Ao cair da tarde, Vivien envia Girart a pedir ajuda a Guilherme.
O conde Vivien perdeu 10 homens, dos 20 que lhe restavam. Os outros perguntaram:
— Que faremos na batalha, amigos?
Disse Vivien:
— Em nome de Deus, senhores, escutai-me. Enviei Girart levando uma mensagem. Hoje mesmo vereis Guilherme ou Luís, o piedoso. Com um ou outro venceremos os árabes.
— Avante, pois, valoroso marquês — responderam eles.
E ei-los que marcham contra o inimigo.
Os pagãos colocaram Vivien em grande perigo. De seus 10 homens, não deixam um só vivo.
É Segunda-feira à noite, e ele fica só na peleja. Tendo permanecido só, com seu escudo, ele os atormenta com cutiladas repetidas. Com sua espada, ele abate uma centena.
— Não chegaremos ao final — diziam os pagãos — enquanto deixarmos seu cavalo vivo debaixo dele.
Eles o perseguem através dos montes e vales, como o caçador acua um animal selvagem. Um grupo o surpreende no meio de um pequeno vale.
Atiram sobre ele flechas e dardos agudos, que se enterram no corpo de seu cavalo. Um bárbaro, montado em rápido cavalo, avança pelo meio do vale.
Três vezes ele brandiu a lança que tem na mão direita, e numa quarta vez a lançou. O projétil se enterra no lado esquerdo da cota de malhas, fazendo saltar 30 escamas.
Vivien recebe no corpo uma grave ferida, e sua insígnia branca lhe escapa das mãos. Jamais ele a reerguerá.
Ele coloca a mão atrás de si, sente a haste e extrai o dardo de seu corpo. Ele atinge o pagão nas costas e lhe enterra o ferro nos rins. De um só golpe ele o faz cair morto.
— Adeus, patife! Bérbere perverso! — brada o jovem Vivien — Não retornarás mais a teu país, e jamais te vangloriarás de ter matado um nobre de Luís.
Depois ele tira sua espada e retorna a combater. Quando ele golpeia as cotas de malha e os elmos, seus golpes os abatem até o chão.
— Santa Maria, Virgem Mãe e Donzela, enviai-me Luís ou Guilherme. Deus, Rei da glória, a quem devo a vida, vós que nascestes da Virgem Maria e cujo corpo foi criado em união com as Três Pessoas; vós que pelos pecadores sofrestes sobre a Cruz; que fizestes o céu e as estrelas, a terra e o mar, o sol e a lua, Eva e Adão para povoar o mundo, tão verdadeiramente como sois o verdadeiro Deus, impedi-me de ser tentado a recuar um só passo.
Antes, que eu perca a vida. Fazei que eu observe meu voto até a morte, e que, graças à vossa bondade, não o atraiçoe.
Santa Maria, Mãe de Deus, tão verdadeiramente que carregais Deus como vosso filho, protegei-me, por vossa santa piedade, para que os vilões sarracenos não me matem.
Logo que pronunciou essas palavras, se arrependeu:
— Tive um pensamento tolo, querendo evitar a morte. Nosso Senhor não agiu assim, Ele que sofreu, por nossa Redenção, a morte dos crucificados.
Não devo, Senhor, pedir um adiamento da morte, posto que Vós mesmo não quisestes isso. Enviai-me Guilherme de Nariz Curvo ou Luís, que governa a França. Graças a ele nós obteremos a vitória.
O calor era forte, como em maio, durante o outono. Os dias eram longos, e ele jejuava havia três dias. Sofria os tormentos da fome e da sede.
O sangue claro escorria de sua boca e da chaga que tinha ao lado esquerdo. Não havia água nas proximidades; a menos de quinze léguas, não conseguiria encontrar nem riacho nem fonte; não havia senão água salgada, das ondas marinhas.
No entanto, no meio da planície corre um vale com água lamacenta, brotada de uma rocha à beira-mar, que os sarracenos turvaram com seus cavalos. Está suja de sangue e de miolos.
O bravo Vivien corre para lá e, inclinando-se, toma a contragosto aquela água salobra.
Os inimigos fazem chover sobre ele os golpes de lança, mas a cota é sólida e lhe protege o busto. Somente suas pernas e seus braços recebem mais de vinte ferimentos.
Ele então se reergue, como um javali feroz, e tira a espada que lhe pende ao lado.
Defende-se com coragem, mas os outros o atormentam como os cães a um javali.
A água salobra que ele bebeu, e que não pode reter, lhe sai pela boca e pelo nariz.
Ele sofre tanto, que sua vista se turva e ele perde a direção. Para acabar com sua bravura, os pagãos o cercam mais de perto.
Os inimigos o cobrem de golpes de lança e flechas de aço, por todas as partes.
Elas se cravam em seu escudo, tão numerosas que o conde não o pode manter à altura de sua cabeça, e o deixa escorregar para os pés.
Lançando setas agudas, dardos e ferros, os inimigos despedaçam a cota do conde. O aço cortante fende o ferro leve de seu peito coberto de malha. Suas entranhas saem para fora.
Como ele sente que seu fim está próximo, roga a Deus misericórdia.
Vivien caminha através da planície, arrastando suas entranhas entre seus pés e segurando-as com a mão esquerda.
Seu elmo afunda até a altura do nariz. Em sua mão direita ele segura uma lâmina de aço, vermelha da copa à ponta e até à bainha ensanguentada.
Já atormentado pela agonia da morte, ele caminha sustentado por sua espada. Pede com fervor a Jesus Todo-Poderoso de lhe enviar Guilherme, o bom francês, ou o Rei Luís, valente guerreiro.
— Verdadeiro Deus de glória, unido em Trindade, Tu que nasceste da Virgem Maria e foste criado em união com as Três Pessoas, Tu que foste crucificado pelos pecadores, defende-me, ó Pai!
Por tua santa bondade, para que eu não seja tentado a recuar um passo sequer na batalha, envia-me, Senhor, Guilherme do Nariz Curvo, porque ele sabe dirigir uma batalha. Deus, nosso Pai, Rei glorioso e forte, que jamais me venha a ideia de recuar um passo por medo da morte.
Um bérbere, vindo pelo pequeno vale e dando galope a seu cavalo rápido, fere na cabeça o nobre barão, com uma lança de aço que leva na mão direita, e seus miolos se espalham pela grama.
Vivien cai de joelhos. É uma grande perda a morte de um tal homem!
Os pagãos, surgindo de todas as partes, fazem em pedaços o seu cadáver. Eles o levam e o colocam sob uma árvore, ao longo do caminho, para que os católicos não o achem mais.
No campo de Aliscans, o exército cristão, comandado por Guilherme d’Orange — Guilherme do Nariz Curvo — tinha sido derrotado pelos sarracenos. Podiam-se contar apenas quatorze sobreviventes.
Próximo a uma fonte, em um prado, jazia um jovem, quase menino, que apesar disto era um guerreiro que nunca havia recuado. Tratava-se de Vivien, sobrinho de Guilherme, a quem ele amava como a um filho.
Percorrendo o campo de batalha, Guilherme reconhece Vivien e o crê morto, mas este faz um leve movimento.
Docemente o nobre duque se inclina e lhe murmura ao ouvido:
— Tu não gostarias de comungar Nosso Senhor Eucarístico? — e lhe mostrou uma Hóstia consagrada. — Porém é preciso que faças tua confissão.
— Eu quero muito — responde uma voz fraca — mas apressai-vos; eu vou morrer. Tenho fome deste Pão. Eis minha confissão: Não me recordo de uma só falta, a não ser que eu tinha feito o voto de jamais recuar um passo diante dos pagãos, e tenho muito medo de haver hoje faltado com a promessa feita ao bom Deus.
Guilherme do Nariz Curvo tira a Hóstia de uma teca que trazia ao peito, e a aproxima dos lábios entreabertos de Vivien, cujos olhos se iluminam.
A morte lhe desceu ao coração, quando acabou de fazer sua primeira comunhão.
(Fonte: “La Chanson de Guillaume” – “Extraits des Chansons de Geste” - Larousse, 1960, pp. 53; Funck-Brentano, “Féodalité et Chevalerie”)
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