terça-feira, 5 de setembro de 2023

São Teodoro contra o “Sínodo do adultério”

São Teodoro Studita, mosaico do século XI,
mosteiro de Nea Moni, em Chios, Grécia.
Roberto de Mattei
(1948 - )
professor de História italiano,
especializado nas ideias
religiosas e políticas no
pós-Concilio Vaticano II.



Com o nome de “Sínodo do adultério”, entrou para a História da Igreja uma assembleia de bispos que no século IX quis aprovar a prática do segundo casamento após o repúdio da esposa legítima.

São Teodoro Studita (759-826) foi um dos que mais vigorosamente se lhe opuseram, sendo por isso perseguido, preso e exilado três vezes.

Tudo começou em janeiro de 795, quando o imperador romano do Oriente (basileus) Constantino VI (771-797) encerrou sua esposa Maria de Armenia em um convento e iniciou uma união ilícita com Teodota, dama de honra de sua mãe Irene.

Poucos meses depois, o imperador fez proclamar Teodota “augusta”, mas não tendo conseguido convencer o patriarca Tarasius (730-806) a celebrar o novo casamento, encontrou finalmente um ministro complacente no hegúmeno José, abade do mosteiro de Kathara, na ilha de Itaca, que abençoou oficialmente a união adúltera.

Nascido em Constantinopla no ano de 759, São Teodoro era então monge no mosteiro de Sakkudion, na Bitinia, cujo abade era seu tio Platão, também venerado como santo.

O injusto divórcio produziu – informa ele numa carta – uma profunda comoção em todo o povo cristão: concussus est mundus (... Ep II, n 181, PG, 99, coll 1559-1560CD), o que o levou a protestar energicamente com São Platão em nome da indissolubilidade do vínculo.

O imperador deve ser considerado adúltero – escreveu – e, portanto, o hegúmeno José deve ser considerado gravemente culposo, por ter abençoado adúlteros e os ter admitido à Eucaristia. “Coroando o adultério” o hegúmeno José se opôs ao ensinamento de Cristo e violou a Lei de Deus, asseverou (Ep. I, 32, PG 99, coll. 1015 / 1061C).

Para Teodoro, também o patriarca Tarasius deveria ser condenado, pois embora não tivesse endossado o novo casamento, havia se mostrado tolerante, evitando excomungar o imperador e punir o padre José.

Constantino VI e sua mãe Irene. Moeda de ouro, anos 780-790.
Constantino VI e sua mãe Irene. Moeda de ouro, anos 780-790.
Essa atitude era típica de um setor da Igreja do Oriente, que proclamava a indissolubilidade do matrimônio, mas na prática mostrava uma certa submissão em relação ao poder imperial, semeando confusão nas pessoas e provocando o protesto dos católicos mais fervorosos.

Baseando-se nos escritos de São Basílio, Teodoro alegou o direito dos súditos de denunciar os erros do próprio superior (Epist. I, n. 5, PG, 99, coll. 923-924, 925-926D), e os  monges de Sakkudion romperam a comunhão com o patriarca, por sua cumplicidade com o divórcio do imperador.

Estourou assim a chamada “questão moicheiana” (de moicheia = adultério), que colocou Teodoro em conflito não só com o governo imperial, mas com os próprios patriarcas de Constantinopla.

Este é um episódio pouco conhecido, sobre o qual o Prof. Dante Gemmiti levantou o véu alguns anos atrás, numa cuidadosa reconstrução histórica baseada em fontes gregas e latinas (Teodoro Studite e la questioni moicheiana, LER, Marigliano 1993), confirmando como no primeiro milênio a disciplina eclesiástica da Igreja do Oriente ainda respeitava o princípio da indissolubilidade do casamento.

Em setembro de 796, Platão e Teodoro foram presos com certo número de monges do Sakkudion, internados e depois exilados a Tessalônica, aonde chegaram em 25 de março 797.

Em Constantinopla, no entanto, o povo julgava Constantino um pecador que continuava a dar escândalo público e, alentado pelo exemplo de Platão e Teodoro, aumentava sua oposição a cada dia.

O exílio durou pouco porque, na sequência de uma conspiração de palácio, o jovem Constantino foi cegado pela mãe, que assumiu sozinha o governo do império. Irene chamou de volta os exilados, que mudaram para o mosteiro urbano de Studios, juntamente com a maioria da comunidade de monges de Sakkudion.

Teodoro e Platão se reconciliaram com o patriarca Tarasio que, após a chegada de Irene ao poder, havia condenado publicamente Constantino e o hegúmeno José pelo divórcio imperial.

O reinado de Irene foi breve. Em 31 de outubro de 802, um de seus ministros, Nicéforo, depois de uma revolta palaciana, proclamou-se imperador. Pouco depois, quando morreu Tarasio, o novo basileus fez eleger Patriarca de Constantinopla um alto oficial imperial também chamado Nicéforo (758-828).

Em um sínodo convocado e presidido por ele, em meados do ano 806, Nicéforo reintegrou em seu ofício o hegúmeno José, deposto por Tarasio.

Teodoro, que se tornara chefe da comunidade monástica de Studios após Platão se retirar para a vida de recluso, protestou energicamente contra a reabilitação do hegúmeno José, e quando este último recomeçou a exercer o ministério sacerdotal, rompeu a comunhão com o novo patriarca.

A reação não tardou. Studios foi ocupado militarmente, Platão, Teodoro e seu irmão José, Arcebispo de Tessalônica, foram presos, condenados e exilados.

Em 808 o imperador convocou outro sínodo, que se reuniu em janeiro de 809. Foi essa assembléia sinodal que, em uma carta de 809 ao monge Arsênio, Teodoro definiu como “moechosynodus”, ou seja, o “Sínodo do adultério” (Ep. I, . 38, PG 99, coll. 1041-1042c).

O Sínodo dos Bispos reconheceu a legitimidade do segundo casamento de Constantino, confirmou a reabilitação do hegúmeno José e anatematizou Teodoro, Platão e seu irmão José, que foi deposto de seu cargo de Arcebispo de Tessalônica.

Para justificar o divórcio do imperador, o Sínodo utilizava o princípio da “economia dos santos” (tolerância na práxis). Mas para Teodoro nenhum motivo podia justificar a transgressão de uma lei divina.

Baseado nos ensinamentos de São Basílio, de São Gregório Nazianzeno e de São João Crisóstomo, ele declarou privada de fundamento bíblico a disciplina da “economia dos santos”, segundo a qual em algumas circunstâncias se podia fazer o mal em nome da tolerância para um mal menor – como neste caso do casamento adúltero do imperador.

Poucos anos depois, na guerra contra os búlgaros (25 de Julho 811), morreu o imperador Nicéforo, subindo ao trono outro funcionário imperial, Miguel I.

O novo basileus chamou Teodoro de volta do exílio, tornando-o um de seus mais escutados conselheiros. Mas a paz durou pouco.

São Teodoro Studita, ícone escola bizantina.
São Teodoro Studita, ícone escola bizantina.
No verão de 813, os búlgaros infligiram uma gravíssima derrota a Miguel I em Adrianópolis, e o exército proclamou imperador o chefe dos anatólios, Leão V, conhecido como “o Armênio” (775-820).

Quando Leão depôs o patriarca Nicéforo e condenou o culto às imagens, Teodoro assumiu a liderança da resistência contra a iconoclastia.

Teodoro de fato se destacou na História da Igreja não somente como adversário do “Sínodo do adultério”, mas também como um dos grandes defensores das imagens sagradas durante a segunda fase da crise iconoclasta.

Assim, no Domingo de Ramos de 815, foi possível assistir a uma procissão dos mil monges de Studios dentro de seu mosteiro, mas bem visíveis, portando os ícones sagrados e cantando solenes aclamações em sua honra.

A procissão, contudo, provocou a reação da polícia. Entre 815 e 821, Teodoro foi açoitado, preso e exilado em vários lugares da Ásia Menor.

Finalmente pôde voltar a Constantinopla, mas não ao seu próprio mosteiro. Então ele se estabeleceu com seus monges no outro lado do Bósforo, em Prinkipo, onde morreu em 11 de novembro 826.

O “non licet” (Mt 14, 3-11) que São João Batista opôs ao tetrarca Herodes pelo seu adultério, soou várias vezes na História da Igreja.

São Teodoro Studita, um simples religioso que ousou desafiar o poder imperial e as hierarquias eclesiásticas da época, pode ser considerado um dos patronos celestes daqueles que, ainda hoje, em face das ameaças de mudança da prática católica sobre o casamento, têm a coragem de repetir um inflexível non licet.

(Fonte: Corrispondenza Romana, 26 de agosto 2015)

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